28 fevereiro 2010

Noite


Johann Heinrich Füssli;" O Pesadelo"; 1781.


Pássaros riscavam a noite em tons de azul escuro.
No horizonte mais próximo, o rendilhado das árvores
fazia ninho em redor dos candeeiros.
Coroas mágicas enovelavam a luz.
Fantasmas ondulantes acolhiam de ramos abertos
Asas palpitantes que se precipitavam em bandos
Procurando o melhor galho,
Para o aconchego da noite.
O traçado dos pneus deixava rasto brilhante
No asfalto negro e molhado.
Os passos surgiam silenciosos, entre o nada
e o silêncio que se instalava devagar.
A noite surgiu, enrolada no manto de névoa escura.
Num fundo de cimento, uma janela brilhava,
luz branca, coada por cristal de murano.
Era o centro do universo.
No amanhã nascerá uma nova madrugada, e os rouxinóis
cantarão a noite inteira para a celebrar.
Quando o sol surgir, os meus olhos ganharão asas
E irão pousar-te no beiral.
Estenderás a tua mão cheia de grãos de luz
E alimentarás a minha alma faminta.

23 fevereiro 2010

Não posso adiar a palavra

Não posso adiar a palavra
Sob pena
De a pena não correr
E o punho desfalecer.
Trago a dor presa na mão
Esta dor tão portuguesa
Este sentir a saudade
Que sufoca no meu peito
Anseia por liberdade.

E no bico da caneta
Como fino estilete
São rios de tinta preta
A manchar o meu corpete
Que me aperta
Que me oprime
escondido no peito
Este inútil prisioneiro
De crime será suspeito
De me fazer adiar
O sentido das palavras
Sem predicado
Nem verbo
E sem um único sujeito.

22 fevereiro 2010

A Noiva

Chamavam-lhe carinhosamente a “ Menina”, inteligente e culta a que melhor se sabia expressar, como ela não havia outra igual. Destacava-se assim entre as demais, comentavam que tinha sido educada primorosamente, talvez um pouco mimada e protegida dos males do mundo; crescera demasiado contestatária e senhora do seu nariz.
Aos domingos, depois da missa, era costume a reunião no adro da igreja, comentando as tricas e as novidades da vila e de algumas revistas que chegavam ao povoado apenas uma vez por semana. Uma algazarra dos diabos! Seguiam depois em grupos estrada fora, fazendo lembrar flores brancas na beira dos caminhos. Domingo era dia de reunião de família, da cidade vinham os irmãos trazendo pela mão os netos, louros de faces carminadas, fustigadas pelo vento e brincadeira.
Em idade casadoira, a Menina esperava confiante pelo noivo que defendia a Pátria lá pelas Áfricas, bem longe dos campos que ambos tão bem conheciam: - Os campos com cheiro a feno no pino do verão, ou as primeiras queimadas de outono, através da memória olfactiva recordava sensações inebriantes que a faziam corar e quase desfalecer.
Desde bordar o enxoval, ler um livro ou pintar um quadro era sempre a mais prendada, tinha mãos de fada – diziam!
A Menina emprestava cor à vila, ao adro, aos campos; a vida sorria-lhe em cada dia.
Certa manhã, o carteiro já ofegante, calcorreava o empedrado cinzento de basalto avançava rápido trazendo o saco ao ombro cheio de palavras sortidas – como as caixas de bolos que antigamente se vendiam.
Recebeu das suas mãos, ansiosa por notícias, um sobrescrito cor sépia, com o escudo português no canto superior esquerdo; no interior em missiva dactilografada e formal , dava conta que o noivo tinha sido ferido numa emboscada na zona de Viana, à saída de Luanda, antes de chegar a Nambuangongo.
Quedou-se , sentada na escadaria de granito; o tempo parou de imediato, suspenso sobre ela mesma, vendo-a endoidecer de saudades. Por ali ficou anos a fio, enredada, presa aos cheiros das queimadas, o aroma da primavera e do feno do verão.
Dizem as gentes locais que ainda hoje lá está olhando a curva do caminho, à espera de ver chegar o noivo.
Dentro da casa de vez em quando uma voz chama: - Mãe....!

21 fevereiro 2010

Morrer lentamente

A porta fechou-se de mansinho atrás de si. Desceu vagarosa o lancil de pedra mármore, que emoldurava a porta de entrada da casa.
Percorreu os locais preferidos da cidade; há muito que tinha perdido as suas crenças, era como um invólucro vazio, um corpo sem rumo, perdida a esperança.
Mesmo fazendo tudo ao contrário, para não morrer lentamente, existia apenas uma linha de sentido obrigatório em direcção ao fim da vida..
Veria chegar o fim e descobria que há tempo relativo, medido pela nossa cabeça que pode ser rápido ou lento, e um tempo absoluto (medido pelos relógios) que é inexorável e nos mostra os tempos que perdemos quando fazemos as contas.
Foi tudo isso e muito mais que lhe passou pela mente, enquanto, sentada na paragem de autocarro, olhava, sem olhar, o vai e vem apressado da cidade que corria sabe-se lá para onde.
No alto da cidade, existia um miradouro que ela recordava agora; ali o tempo tinha sido rápido, não tinha parado como ela desejara, nem mesmo dentro da pequena igreja, onde interiormente uma prece tímida tinha brotado, esse tempo tinha partido à desfilada, levando consigo um outro tempo que nunca mais voltaria, mas ela não o sabia ainda.
Ocorria-lhe uma frase de Pablo Neruda :
“Morre lentamente quem evita uma paixão, quem prefere o negro sobre o branco e os pontos sobre os “is” em detrimento de um remoinho de emoções justamente as que resgatam o brilho dos olhos, sorrisos dos bocejos, corações aos tropeções e sentimentos.”
Também ela não tinha sabido evitar essa paixão, e morria na mesma , lentamente, sem brilho nos olhos, sem sorrisos e tropeções só os do pequeno coração que batia dentro de si. Um coração que pararia em breve.
Chovia no corpo enregelado, dois corações a bater num só compasso.
O amanhã não existiria para nenhum deles. O ontem tinha sido construído sobre a clandestinidade, oculta na noite, entradas e saídas na escuridão de uma qualquer curva de estrada mais sombria.
Caminhou devagar até um pequeno jardim, onde podia avistar a memória do que já não mais seria presente. Ainda conseguiu sorrir, lembrando beijos que lhe tinham sido roubados.
Abandonou-se por ali, num pequeno banco de madeira, ensopado de chuva e de tantas outras confidências feitas ao longo do tempo.
A manhã não conseguiu chegar até ela. Quando o sol nasceu já era tarde para os dois corações que pararam na madrugada gelada.
Tal como um relógio sem corda.

17 fevereiro 2010

Vénus


Nascimento de Vénus

Colinas suaves,
macias,
Aveludadas,
cor de areia.
Esculpidas
nas minhas mãos
Lua cheia,
Luz coada
Vénus abandonada
Em monte coroado
Rosado,
ponto a ponto
Em contraponto,
Em ida e volta
Ofegante.
E nos teus olhos
O brilho de diamante
E da tua pele macia
Brotam bagas de cristal
Escorrem pelos dedos
Delírios de fantasia
Sem máscara,
com magia
Sussurrando
Com meiguice,
Com desejo
Ondulando
Já sem pejo
Mordendo
A boca
E o beijo.

15 fevereiro 2010

Rituais

No trilho das traições
Percorri, alucinada
pela vereda escura
uma longa caminhada.
Pelos quatro caminhos
Eu segui atormentada.
Nas sebes espinhosas
Oculto entre a ramagem
Negra criatura espreitava
Coração oculto
Alma turva
Olhar pardo e visceral
Negro e feio bicho
de seu instinto animal
Meio homem
Meio deus
Personificação do Mal
Enraivecido pela vida
Descarregou em mim
Todo o fel, todo amargo
Pestilência sem fim.
Envolvida num casulo
Finas teias de egoísmo
Aprisionou-me o corpo
E lançou-me no abismo.

Agora pairo, no limbo
entre o ser o não ser
vivo só por umas horas
até ao amanhecer.
Quando o sol nasce
morro eu, até ao entardecer.
É na escuridão da noite
que vou tentando viver.
um corpo feito núvem
um coração de fractal
a alma perdi-a na queda
num estranho ritual.

12 fevereiro 2010

O sofrimento é como sal que curte a alma

O sofrimento é como sal que curte a alma, torna-a numa espécie de pele macia, de toque agradável.

Impossível olhar e não deixar de ver que existem peles curtidas pelo sofrimento, pequenas mãos sofridas, corpo e alma com magro sustento.

Quereria eu escrever sobre a beleza, sobre o sol, sobre o sorriso das crianças, mas vislumbro neste mundo egoísta, tanta falta de sensibilidade e sobretudo teoria e palavras ocas espalhadas ao vento , uma espécie de adubo tóxico . Alguns chegam mesmo a invocar o nome de Deus em vão : - Deus é Pai – para os que lhe batem à porta, para os que levam à risca os seus ensinamentos. Letra morta não faz Fé!
E por falar em “bater á porta” eis que...

Hoje entrou-me um pequenino pássaro pela minha alma adentro; esverdeado, minúsculo, com um bico preto afiado, olhos negros brilhantes – duas pequeninas missangas. Para o salvar do embate contra as vidraças, tive de apanhá-lo, de o manter cativo por breves instantes . Senti o seu minúsculo coração a bater descoordenado.
Em voz baixa sussurrei: - Meu pequenito, as minhas mãos, pequenas e sofridas, não te fazem mal, prendi-te para te libertar da morte.
Transportei-o com cuidado, sentindo o calor do seu corpo assustado, depois abri a minha mão e soltei-o no sol, rumo às nuvens que passavam.
Por vezes existem almas que se cruzam, feridas nas asas, basta um pequeno gesto para que se elevem e cicatrizem os rios cor de rubi, peles curtidas pelo sofrimento.
Rugas e vincos são memórias do sal que fica impregnado nos dias das nossas vidas.
Voa pequeno pássaro!....

11 fevereiro 2010

Poesia desidratada

Morro de sede, de um absoluto
efémero, que nunca fica.
Registado e vivido,
apenas a marca, indelével
a repetição do sentido.

Seres tu Calipso e eu Circe
paradoxo estranho,
frágil e vulnerável
e o futuro a repetir
até à exaustão a memória
do que não é presente
O não seres tu,
o não ser eu.
Não sermos gente.
repetição do sentido
registado e vivido
Desidratado, seco
no silêncio prosseguindo.