19 julho 2011

Falência ( do Prazer e do Amor)

Um dia acordas estranhamente lúcido e percebes que tudo o que até aí viveste foi verdadeiramente a simbiose entre sonho e pesadelo; percebes que não viveste nada , que deixaste passar a vida adormecido.
E pensas que se te deixares adormecer novamente então é que morres para sempre. Tudo isso porque acordaste a recordar. Aos abrires os olhos prendeu-se –te o olhar na moldura em cima da cómoda, aquela que conseguiu captar em tempos passados uma imagem que no presente é fantasmagórica. Teimas em agarrar-te aos fantasmas, sentes-te um fantasma que deambula sozinho, iludes-te pensando que os outros olham para ti. Nem sequer te vêem. Vais andar em círculos, ou num vai e vem sem sentido, embora penses que há sentido no teu vai e vem.
Um dia tentas dar novo sentido à vida, queres acordar de uma vez por todas, mas não consegues, queres falar e ninguém te ouve; gritas e dizes : EU ESTOU AQUI.
Há um movimento à tua volta que não entendes, fios, estranhas máquinas, écrans esverdeados ligados a ti, como se fosses um SERVIDOR. Tu és um servidor, mas algures o hardware colapsou.
Voltas novamente ao sonho, tentas mexer uma qualquer extremidade do teu corpo e não consegues. Malditos fantasmas que te olham dentro da moldura. Maldita proibição interior que dá origem a esse bloqueio inultrapassável . E pensas.... ( nisto), como ele também pensou...
Ó horror metafísico de ti!
Sentido pelo instinto, não na mente!
Vil metafísica do horror da carne,
Medo do amor...
Entre o teu corpo e o meu desejo dele
Está o abismo de seres consciente;
Pudesse-te eu amar sem que existisses
E possuir-te sem que ali estivesses!
Ah, que hábito recluso de pensar
Tão desterra o animal que ousar não ouso
O que a [besta mais vil] do mundo vil
Obra por maquinismo.
Tanto fechei à chave, aos olhos de outros,
Quanto em mim é instinto, que não sei
Com que gestos ou modos revelar
Um só instinto meu a olhos que olhem ...
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Prosa de Arroba das Palavras, Poesia de Fernando Pessoa

13 julho 2011

Memória Olfactiva


Invertendo o sentido e tentando emprestar alguma utilidade prática à realidade com que era obrigada a coabitar e já depois de devidamente licenciada em solidão, estando num período de secura poética, decidiu aventurar-se a escrever algo específico sobre os mecanismos da memória olfactiva.
Em pleno processo de pesquisa, espalhou por cima da mesa vários frascos de água de colónia, perfumes e essências que guardava religiosamente.
Devagar, um a um, foi abrindo e sentindo. Tantas memórias que por ali estavam há anos aprisionadas: a colónia de criança, a água de perfume de adolescente, o perfume de mulher e...o seu perfume. O perfume dele, aquele que ela cheirava às escondidas quando entrava numa qualquer perfumaria e, um dia comprou, só para usar , em momentos de maior solidão, pensava ela que inevitavelmente sabendo que iria fazer um Mestrado em Solidão.
Rápida e certeira a reacção olfactiva assim intimamente ligada à memória dos cheiros trouxe-lhe o despertar da saudade de tempos passados e que foram fonte de enorme prazer.
Sorriu para si mesma quando lembrou que, às escondidas, lhe tinha roubado um cachecol e durante um tempo indeterminado adormecia abraçada a ele. Curioso como restava intacto aquele banco de memórias olfactivas que dava às suas emoções, impressões de prazer e de desprazer.
Lembrou do cheiro da colónia misturada no corpo dele. Sem querer, vislumbrou-o com aquele estranho sorriso que tão bem lhe conhecia e usava em ocasiões especiais a dizer-lhe: Hoje é o último dia em que somos um....amanhã seremos apenas tu e eu, o nós deixará de existir.
Sorriu contristada ao recordar a contragosto e decidiu-se por um café Blue Mountain, afinal as memórias não acabavam ali, e o cheirinho bom do café animou-a a prosseguir; já basta o que basta e uma semana de internamento com os odores do éter e todo aquele ambiente hospitalar levaram-na a dar outro valor à vida. Só faz falta quem quer viver. Quantos aromas de flores depositadas em redor de corpos cuja alma há muito já se foi.
E vida há só mesma uma: a minha que não a tua, que não a nossa.

05 julho 2011

Esperança



Rebentou a trovoada. Atrás da serra via ao longe os clarões a aproximarem-se rapidamente trazendo atrás de si uma chuva quente a descarregar, de supetão, naquele pedaço de mundo.
Dioniso tratou de guardar as cabras e abrigou-se debaixo do varandim a ver chover.
Gostava de chuva. Muito mais do que da chuva gostava mesmo  de presenciar os raios, que se abatiam a esmo e queimavam sem dó nem piedade, cortando em dois os sobreiros centenários.
Fazia agora um ano que se tinha refugiado na povoação, aldeia quase desconhecida no mapa; ao principio tinha sido olhado com desconfiança mas agora as gentes do lugarejo sabiam da sua história e acarinhavam-no.
Corria no povoado que durante anos tinha estado apaixonado por uma criatura – eram os próprios habitantes que lhe chamavam assim – desprovida de alma, desprovida de coração, fria como as neves da Sibéria, egocêntrica e egoísta. Tinha-se  dedicado de alma e coração, abnegadamente,  sem nada exigir durante quase uma década; mas chegou um tempo, um momento muito preciso em que percebeu que a continuar aquela paixão corria o risco de se transformar num farrapo. Pensou com ponderação no assunto, tinha várias saídas: o suicídio ou matar a criatura que o sugava diariamente. Optou pela última. Reuniu todas as lembranças dela: as cartas, uma madeixa de cabelo castanho dourado, os retratos, os livros que ela escreveu, algumas roupas dispersas- procurou apagar  todos os vestígios da sua presença na vida dele. Guardou tudo numa caixa de papelão e, num canto afastado e longe dos olhares indiscretos fez um auto de fé. De seguida ouviu um Te-Deum, chorou copiosamente, soluçou sozinho, arrancou de si todo o desamor que ela lhe tinha dado e decidiu-se a partir dali. Findados os preparativos, fechou a casa à chave e rumou o mais longe que conseguiu. Valia mais tomar conta de um rebanho de cabras do que aturar semelhante animal, quase que  sentia os chifres a aguilhoá-lo, tal a dor e o aperto que sentia no peito. A saudade ainda o não tinha largado.
Sozinho debaixo do varandim rezou e pediu aos deuses para que um raio se abatesse sobre ele. Misturou a chuva com as suas próprias lágrimas e num gesto de desespero decidiu-se a entrar dentro do curral para abraçar uma pequena cria – a primeira  que ele tinha ajudado a nascer. Prometeu a si próprio que aquela nunca seria sacrificada. Chamou-lhe Esperança.