14 janeiro 2016

TURQUIA



Em Portugal passa das 4 horas da tarde, sei  que chegaste bem a Ancara. Telefonaste do átrio do  hotel, em pleno parque de Sultanahmet  perto de Aya Sofia, a jóia da coroa de Istambul, a Igreja da Divina Sabedoria, (Aya Sofya em turco), hotel cujo nome apontei à pressa num post it. Fiquei apreensiva porque  disseste que irias dar uma volta pela antiga Constantinopla sozinho; isto depois de teres almoçado no restaurante daquela estação que se tornou famosa pelo Expresso do Oriente – essa mesma de onde o Calouste Gulbenkian partiu um dia em fuga.
Porque terei  de andar sempre com o coração nas mãos sempre que te ausentas para zonas cada vez mais inseguras? É certo que  o mundo é um lugar  perigoso,  creio que nos tempos que correm ninguém pode escapar ao seu destino. Tenho saudades do tempo em que  juntos deambulávamos- em paz - naquele colorido mercado de especiarias (  ao longe ouvia-se o murmurejar dos cruzeiros  nas caóticas docas de Eminönü  - próximas ao mercado),  visitámos depois  a mesquita de  Süleymaniye; recordo aquele  passeio pelo Bósforo , a paisagem ondeava  ao longe com as fortalezas de   Rumeli, a da Anatólia do lado asiático e várias mesquitas e palácios ao longo do estreito, até alcançar Anadolu Kavagi, a poucos quilómetros do mar Negro. Em Anadolu Kavagi, o ferry parou  durante 3 horas, foi aí que depois do almoço explorámos  o castelo de Kavagi. Foi aí que me prometeste que tudo seria diferente, que não voltarias a aceitar missões que envolvessem risco de vida.
No regresso, à passagem pelo palácio Dolmabahce, vimos juntos o sol a deitar-se no horizonte.
E hoje a realidade sobrepõem-se às memórias felizes – mais  um atentado - desta vez  na praça Sultanahmet, perto da mesquita Azul e da igreja de Santa Sofia, os monumentos mais visitados do país e perante o terror  dos turistas que ali  estavam. A detonação foi ouvida a quilómetros de distância,  perante o relato da existência de corpos mutilados o meu coração fica apertado, com o medo que nele se  instala.  Digo baixinho que sou forte e que não cederei perante ameaças de gente cruel e desumana, evito pronunciar os seus nomes, apenas o teu repito alto e em bom som. Volta depressa.





22 dezembro 2015

ÁFRICA MINHA



     Hoje não teria sido possível ouvir a tua voz se não conseguisses telefonar.  Contudo era quase o eco de uma voz distante e enrouquecida  perante os horrores dessa guerra. Mal te consegui ouvir. Penoso  o cumprimento do dever em terras que parecem  amaldiçoadas: Warwara, Mangari e Bura-Shika.
     É uma África em convulsão atacada nas entranhas, violentada a cada hora que passa. As notícias sobre o ataque foram lentas a aparecer, há dificuldades de comunicação, resultantes da destruição dos postes de telecomunicações feitas pelo Boko Haram em ataques anteriores. Gente malvada e sem coração – disseste-me tu num soluço. Oiço-te e fico-me  presa a silêncio aterrador apenas quebrado pelo respingo da rede telefónica.
     Como é possível que desde há meses  o Boko Haram  venha multiplicando os atentados suicidas, para os quais recorre com frequência a crianças e adolescentes na Nigéria e nos países vizinhos. E ninguém faz nada! Que Mundo estranho este,  e nós aqui  só falamos da Europa e dos EUA. África continua esquecida.    
     Receio pela tua segurança.
     E eu nada posso fazer para suavizar esse sofrimento, essa impotência que te faz submergir, essa raiva que te invade nas noites que parecem não ter fim e que sufocam. Onde está a nossa África? A nossa África Minha das estepes a perder de vista, dos embondeiros que  se oferecem generosos nas suas copas rendilhadas para refrescar a tua e a minha sombra? Lembras-te?
     Saberás tu ainda das noites de céu vermelho e do rugir distante das feras, dos tambores atroando magias?         
     Aquele era ainda  um tempo de paz. A nossa paz. Um tempo em que os nossos corpos eram duas  fontes cristalinas.
     E agora, tu aí, em redoma de ar condicionado; prisioneiro, pois que te está condicionada a liberdade de circulação, guardado  a sete chaves. Olhar perdido, enovelado em pensamentos que se escapam céleres, oxalá  viajem para bem perto de mim, da nossa baía – agora tão mansa e parada de tão triste que está.
 –Espero por ti – confidenciou-me ela neste fim de semana que passou.
     Estive lábem junto às águas mágicas, entretive-me a desenhar círculos na areia molhada –  numa espécie de código.  A distância pode separar-nos  fisicamente mas o meu  pensamento sabe encontrar o  teu, todas as noites, dentro do círculo que desenhei. Porque todas as noites abro as minhas asas e enceto nova viagem atravessando terra e mar. Nem  mesmo que a vaga maior , a da sétima onda,  desfaça  o traço infantil com que quero assinalar como és importante para mim. Volta depressa.
     Na Noite de Natal  junta-te a mim para que o nosso  olhar se eleve  no  profundo do azul ceilão e  oremos ao Salvador para  Ele que tenha misericórdia dos inocentes que sofrem .

15 setembro 2015

Eu queria levar poemas para combater a guerra

Eu queria levar poemas para combater a guerra
O ódio, a intolerância, o egoísmo
Mas os mortos já não podem ouvir
Jazem de olhos esganados à procura
Da luz da última estrela.
Os vivos estão surdos e esqueceram
Que saber ler é agora um luxo.
Nada conta a não ser a réstia de água
Que escorre furtiva na lixeira que se avista
Eu queria levar poemas para combater a guerra
Mas esbarro no pavor quando olho
E vejo as minhas mãos tintas de sangue
Dou por mim a implorar que a cor fosse verde
E que os rios transportassem pão e vinho
E que o mar não estivesse tinto de ódio
Transformado em negra cloaca dos senhores da guerra.
Outrora  brancas as velas, deram lugar à borracha
Camuflando  caixões modernos feitos da última árvore
Que nasceu , não para fazer sombra, mas para ocultar
O horror do desespero, o grito sufocado pela vaga clandestina
A que chega na rebentação e trás já o poema  amortalhado.
Maria João Nunes


Os náufragos de Medusa
óleo sobre linho 491 x 716 cm
Paris ,Museu do Louvre

12 maio 2015

O Caminho de Luang Prabang



Faltou a coragem quando pensei em telefonar-te. Continuo  a seguir-te os passos, através do mapa, nessa longínqua  Luang Prabang; tu rodeado de  templos com telhados dourados  por entre monges que caminham em procissão pela cidade a pedir esmola, tu desse lado do mundo a fazeres o teu caminho - e eu aqui, deste lado, onde parece que nada se move.
Coloquei no forro da tua mala uma fotografia  - assim não me esquecerás.Mas sinto que estás cada vez mais distante de mim, nessa busca desesperada de um retorno ao teu Eu. Aborreço-me sem ti por perto, e, das rotinas que tinha, vou-me desprendendo sem dar por isso: também já não consigo ler, ardem-me os olhos e acabo por me abandonar a mim e aos os livros num qualquer lugar.
Resolvo  ficar imóvel, de olhos vazios, a  tentar fixar  o olhar num  ponto  na parede sem cor- talvez uma mosca, um mosquito ou outro insecto que ali poisou.
Em vão.
Teimoso o olhar desvia-se e fica parado no rosto aprisionado na moldura; o resto é a casa vazia e ,ao mesmo tempo,  tão cheia de recordações. Lá fora o sol persiste em queimar o viço da erva que cresce desalmada nos canteiros.

Sei que um dia irás regressar ao lugar onde nasceste mas já não serás o mesmo. Pela ordem natural das coisas estarei lá, presente nesse lugar, esse será  então o momento onde te poderei finalmente  reencontrar, onde conseguirei então descansar. Nós dois à sombra do velho cipreste que recorta o céu azul . Quem sabe se  poderei então abraçar a velha árvore e sentir no  tronco o pulsar do teu coração. Enquanto assim não é  aponto no mapa, com o dedo esticado, os caminhos por onde andas. Enquanto isso há a luz de Luang Prabang  a primeira das virtudes de Luang Prabang para saudar os viajantes.Vejo os  Frangipanis perolados com seu perfume inebriante- a flor símbolo do Laos -,  os bancos de madeira salpicados  de outras flores vermelhas que se desprendem das árvores e os monges e noviços  com as suas vestes cor de  sienna queimado ou ainda outros  cobertos de ouro resplandecente. E tu, sempre tu sentado numa qualquer esplanada sorvendo o ar e o  cheiro de café fresco, a espiar a   actividade no rio, a passeares-te no colorido mercado de produtos e comida picante e no instante seguinte espraiares o olhar no horizonte rodeado por montanhas  acima do nível do mar, na confluência dos rios Nam Khan   Mekong. 
Luang Prabang é agora o teu paraíso e eu não estou lá.

(c) Maria João Nunes

11 maio 2015

EXÍLIO



Sigo-te à distância, através do caminho místico da cidade. Trazes em ti lugares desconhecidos: cidades pinceladas a lápis-lazúli, rios banhados a ouro  e luares de prata cinzelada pelo melhor ourives do Universo. É por isso que te sigo, porque me deixas maravilhada como se tivesses acabado de chegar  de um conto das mil e uma noites. Porque brilhas como sete sóis.
Cheguei  fora de horas  num tempo que já não me pertencia - em que tu já não me pertences - e por mais que persista em guardar-te na memória - esta vai-se cobrindo com  véus tecidos por Lethe. É certo que resisto,  mergulho devagar,  sinto que me afundo mais e mais a cada noite que se esvai no calendário dos homens. Acabarei exilada. Vislumbro-te por entre a cortina de bruma que paira sobre a cidade. Imagino-te a cada manhã, piscando os olhos sob a luz abrupta, recomeçando uma e outra vez numa luta constante, a desviar a cortina do desejo para deixar entrar a claridade nua: a luz da realidade com que te vestes e caminhas nas artérias da urbe . Este meu esforço de rememoração confunde-se com a pesquisa do verdadeiro. Afinal , saber não é outra coisa senão lembrar-me. Não me quero esquecer das noites incendiadas nem das madrugadas com céu cor de meloa madura que me traziam no ar o teu cheiro a saber a sal e exaustos, cansados,nos corpos arqueados em espasmos de volúpia amadurecida. Era o tempo da descoberta, da entrada nos jardins do Éden. 
Resta-me perseguir-te os passos no caminho de basalto negro e branco, como se fosse a cidade inteira um imenso templo de alquimias escondidas. Exilada de mim e de ti.

08 maio 2015

PRIMAVERA ( Acho que regressei)



Céu, magnífico azul
traçando o perfil das paredes caiadas
evocam a cor dos anjos
voando no cimo das latadas.
Perfume de primavera
incontáveis flores de todas as cores
rosas, sangue de Cristo
singelas as azedas amarelas.
é a primavera que nasce assim florida
de novo a seiva brota em hino à Vida.
E o ar que tu respiras volta a ter gosto
e som de maravilhas.
Vaidosos são os campos a perder de vista
os arrozais vestidos de esperança
gorjeiam pelo ar as avezinhas
e treinam sorrisos de criança.


Maria João Nunes

19 junho 2014

Eu sou o anjo de pedra, a estátua pintada de cal
eu sou a miragem no branco areal.
Eu sou a lembrança do bem e do mal.
Sou a vela solta, no barco à deriva.
Cavalo alado, de asa ferida.
Eu sou a que não sou
a que nunca parte, a que nunca amou.
Sou o fantasma a deambular
eu sou cloreto de sal
sou o branco marfim
sou a dor, sou a memória
de tudo o que não tem fim.

@Maria João Nunes