Reformado da Marinha Mercante, conheceu em tempos idos a bordo de navios que transportavam mercadorias, as sete partidas do mundo, azuis águas do Pacífico, Atlântico verde e profundo, cruzou os mares enfrentando tempestades, conheceu portos e deixou em cada um deles, como todo o bom marinheiro que se preze , namoradas e inconfessáveis aventuras.
Não era um homem comum, apesar dos seus setenta e muitos anos, conservava ainda uma invejável actividade, fazia-se rodear sempre que possível de uma corte feminina, também elas já em idade provecta. Homem baixo, cabelos brancos, fazendo lembrar pela sua lentidão um cágado, mas de olhar vivo e maroto, desprendia-se-lhe um odor agri-doce enjoativo que afastava os narizes, até os menos sensíveis.
Frequentava no dia a dia um clube recreativo, fazia dele a sua segunda casa. Inúmeras exposições sobre barcos, navios, fragatas eram de sua autoria com fotos de navios pacientemente recolhidas e recortadas de calendários, revistas da especialidade tudo o mais que viesse à sua rede de comandante da marinha mercante.
Para além do gosto pelo sexo oposto, o comandante tinha verdadeiro amor pelas tartarugas, e cágados, estes uma variante portuguesa das tartarugas, inclusive chegava a baptizá-las com nomes de Ester Williams , uma estrela do cinema americano, campeã de natação e actriz num filme chamado “Escola de Sereias”, Pitágoras porque era um cágado muito esperto , especializado em triângulos rectângulos e Arquimédes, uma alusão ao principio de Arquimédes em que os cágados e as tartarugas mergulham e vêem à superfície
Aos domingos à tarde passeava as tartarugas pelos lagos da cidade e arredores; escolhia os locais menos frequentados, atravessando zonas interditas dos jardins de Queluz, um dos seus locais preferidos com lagos que possibilitavam o doce lazer das suas criaturas de estimação . Um dia arriscou-se demasiado , a tal ponto que o guarda florestal o perseguiu em passo apressado, deixando o pobre do Comandante ofegante, exaurido de tanto saltar as sebes dos relvados do palácio. Atrás de si arrastava triunfal, guardadas dentro da camisa Ester Williams e Pitágoras!
Certo dia o Comandante planeou organizar uma tertúlia musical, fazendo-se acompanhar das suas inúmeras fans; um sucesso de bilheteira! Veio inclusive anunciado em cartazes espalhados pela cidade.
Tive o privilégio de, ocasionalmente, observá-los no doce fruir da música italiana - pois está claro! Cabeças já platinadas pelo tempo cantavam melodias de outras eras, trauteavam e comentavam como era romântico, lembravam os bons velhos tempos, os bailes a bordo dos navios de cruzeiro, era ainda o Comandante um rapaz jovem e garboso. Tudo isto para já não falar da sua paixão platónica pela jovem italiana que frequentava a sociedade recreativa. Trinta anos mais nova.
Sucede que, aqui há umas semanas , misteriosamente ao velho comandante, desapareceu-lhe um disco de vinil da sua rara colecção, percorreu alucinado todas as dependências da sociedade recreativa, em busca de tal artefacto; alguém lhe disse para rezar um responso ao Santo António, talvez pudesse resultar, sucede que ninguém sabia a reza por inteiro e, assim lá se deu como perdido o disco de vinil da Amália.
Há poucos dias voltei a vê-lo novamente; dentro da camisa vermelha assomava a cabeça da Ester Whiliams, tirou-a com cuidado e pousou-a sobre a minha secretária. Fiquei parada a olhar o bicho que, também parecia fitar-me A solidão tem destas coisas, homem e animal irmanados deixam-me a pensar sobre o sentido da vida.
1 comentário:
Um tipo que traz a Ester Williams entre a camisa e a pele só pode ter sido um grande Comandante e daqueles de longo curso. E ainda por cima estou a vê-la, à Ester,já equipada de fato de banho, pronta a saltar para qualquer piscina...
Belo personagem e bela história.
Enviar um comentário