30 outubro 2009

Asas

De tanto gritares e não conseguires
fazer-te ouvir
transformaram-se as tuas mãos
em asas para me fazeres sorrir
À noite fecho os olhos,
e da minha janela da alma
convido-te a voar comigo
aos locais onde sempre
quisemos ir.
E nessa forma sonhada
surge a o teu riso
num vulto de coisa alada
e acordo já tão tarde
sentido-me assustada
por saber que ganhaste asas
e no meu sonho
partiste de forma inesperada.
Logo, mais à noite
vou-me preparar
para outra jornada
Transformar as minhas mãos
em nada.
Assim , sem mãos já não sonho
porque a poesia ficará
por dizer, aqui
dentro do meu peito fechada!
Voaste para tão longe,
como conseguiste tu deixar-me assim
abandonada?
para que serve ter asas ou mãos
se subiste tão alto e não me levaste
contigo?
Já me chamam desterrada,
Quisera eu ser assim
forma eternamente alada.

26 outubro 2009

Memórias

Nascem na memória
imagens de metades perdidas
Cortadas ao meio,
Estranhamente divididas
por um fino esteio,
cruéis imagens feridas
Espécie de teia emaranhada
Uma voz que ecoa, distante
Que corta
Ecoa , absorta , magoada
vidro cinzelado a diamante.
Efémera recordação ,
Lamparina flamejante
Lançando sombras no chão
Onde se recorta, intacto
O teu vulto flutuante

E por vezes as memórias
Atraiçoam, sem saber
Se lembramos hoje
O que vivemos ontem,
Se o ontem não existiu
Que lembranças ficarão?
Do que não foi vivido
Por não existirmos hoje
Na nossa recordação
Nas memórias que fingimos
Deixar o tempo roubar
Qual bicho que nos devora
Este nosso imaginar
Até que virá um dia
Em que a memória se vai
Para um qualquer lugar
E nos deixa tão sós
Sem nada para recordar.

25-10-2009

20 outubro 2009

Sonhos

Sonho às vezes , sonhos impossíveis
Coisas de menina, que não cresceu ainda
Sonho a saudade que sinto
De não te sentir assim
Poder deitar a cabeça nos teus braços
No teu aroma de jasmim.
Sonho que chegas no teu cavalo de pau
Chegas inteiro, no silêncio das grandes noites estreladas
para me leres um velho conto de fadas.
Sonho que me abraças como se fosses a corda
E eu pião ou a tua bola colorida.
Aquela que , mais do que tudo, tanto gostas de rolar.
Ficamos ali, devagar, parados, entre sombras
Sentindo a dois , aquele imenso abraçar.
Então, uma onda suave nos invade
Como se não existisse mais nada
Como se tu fosses remo e eu a tua jangada.
E remamos os dois juntos, no mar calmo
Sem parar.
Avanço de proa erguida, sentindo o teu remar
Sempre em redor de nós, onde me irás abraçar
Até ao dia final em que o sonho se acabar.
Uma onda rolará, revolvendo o côncavo
Do meu peito a palpitar.
E no dorso curvo dos montes
Negro corcel me irá arrebatar
Agitando as longas asas
Quebrando os ninhos em flor
Acordarei do meu sonho
Num pesadelo de dor
Eu que não queria sonhar
Não queria adormecer
Sinto um cortejo sinistro
Que me vem ver a morrer.

19 outubro 2009

História perdida

À noite, quando as luzes se apagam, perfilam-se nas prateleiras longas vultos alinhados militarmente , um enorme exército que silencioso comunica entre si .
Havia já algum tempo que me apercebia de tais movimentações e pela manhã notava , que alguns deles tinham alterado o lugar que lhes tinha sido destinado. Dispus-me a ficar de atalaia servindo-me de alguns auxiliares de vigilância.
Na primeira noite, munida com um longo fio de linha cor de café com leite, tratei de marcar algumas dessas prateleiras circundado-as de modo a que ficassem aprisionadas.
Esperei ansiosamente os primeiros alvores do dia que se anunciava cinzentão e desci, pé ante pé, pela velha escada de madeira, que rangia contra a minha vontade; do meu interior saia uma voz que lhe ordenava a ela que se calasse que não rangesse mais a velha tábua carunchosa – tinha de a mandar substituir, mil vezes o tinha pensado e outras tantas o tinha adiado - e que me deixasse, agora também eu uma espécie de clandestina a coberto da madrugada, subrepticiamente introduzir-me no meio do exército aparentemente emudecido.
Finalmente consegui aterrar no sofá de couro , envelhecido pelo uso e cheio de longas estrias claras que lhe sulcavam a pele – até lhe ficavam bem, davam-lhe um certo ar de imponência, aquele que apenas quem percebe dessas coisas de rugas sabe avaliar o que significam e como tal , entende de modo particular o superior significado e designio das mesmas.
Dediquei-me então a olhar com atenção, indagar quem se tinha deslocado do respectivo lugar, inquiri as quotas, os espaços vazios, que a cada noite que passava aumentavam a negra volumetria , fazendo lembrar enormes bocas escuras, desdentadas, prontas a tragar quem por ali passasse desprevenido.
E, não é que faltavam ali mais uns dois ou três exemplares raros?!! Belas capas de cor de carneira, com ferros dourados tinham desaparecido – mas para onde???
Na prateleira do fundo, aquela que tinha as almas guardadas dos escritores de última flor de Lácio, tinha sumido uma edição rara dos Lusíadas e mais além uma outra, com o testemunho de uma vida passada nas Áfricas acabava de cair em combate, espalhada no chão, as páginas outrora ilustradas com gravuras, agora arrancadas, jazia por terra horrivelmente mutilada.
Quedei-me muda, tal era o meu espanto, sem reacção no corpo que se deixou abater no velho sofá de couro, afundei-me então em pensamentos; quem seria o traste, o bandido que ousava assim enfrentar os meus domínios e roubar-me as almas dos que há muito tinham partido e tinham sido confiadas à minha guarda?
As longas linhas cor de café com leite , algumas delas, haviam sido quebradas, outras mantinham-se intactas. Algum corpo se tinha introduzido na sala e tinha roubado mais do que bom par de almas mudas e silenciosas e, eu não sabia como!!!
Mas ...eis que... numa modesta prateleira, já lá mais para o fundo, estava um livro que eu nunca houvera visto, sem quota, um estranho exemplar assim como se fosse uma alma recém -chegada, com capa de cor creme, algo acetinada, uma espécie de veludo, com uma rosa carminada a ilustrar o frontispício; peguei-lhe delicadamente , abri tentando identificar o autor da curiosa prosa que se adivinhava de inicio numa magnifica escrita cortesã , letra pequena, vistosa e elegante.
De imediato percebi que tinha ali a chave do enigma.
Narrava então – e com isto perdi duas noites lendo hipnotizada – a paixão do autor , bibliófilo – pois está claro – e todo o processo em como se tinha tornado um elzeviromaníaco, procurando sofregamente edições realizadas pelos Elzevier e sonegando como se de um cleptomaníaco se tratasse, as almas dos que á minha guarda tinham ficado.
Esta é a história de uma história perdida , que diz respeito a todos quanto amam os livros, aos que tem prazer de os abrir, de lhes sorver o aroma, esse perfume inconfundível que se solta do seu interior , uma espécie de espirito que vive em cada livro e nos narra maioritáriamente na primeira pessoa entre silêncios , sons e imagens que nenhum de nós poderá jamais viver, porque não são as nossas experiências mas sim, os testemunhos de quem para sempre viverá entre mil folhas de papel, exército silencioso e vivo perfilado militarmente nas prateleiras de cada casa que nem a poeira dos tempos fará silenciar.

16 outubro 2009

A nossa Hora.

Às vezes imagino-te assim
A dormir no meu vale claro
Apertado entre dois montes
Aconchegado entre mim

No horizonte passeia o sol
Já quase deitado em nós
Devagar desaparece
Entre a vertigem do espaço
Um momento que não esquece
Então tudo é simples,
De uma imensa calmaria
E nos teus olhos eu vejo
Brotar toda essa magia
Um brilho de menino doce
A sorrir no meu regaço
Ao longe o casario
Entre quintais floridos
A colorir este espaço

E sonho, nesse delírio
Desde a noite até ser dia
Que os meus cabelos te cobrem
Ondulando no teu corpo
Uma estranha melodia
Em que vibramos os dois
Em que te perco e te tenho
Ao achar tão perto assim
O teu olhar já perdido
Em ondas dentro de mim.

Sou assim, diante da paisagem
Alguém que te vê
Como aguarela colorida
Que prende sem saber porquê.

Há agora nos montes ondulados
Um cansaço imenso de chover
Todos reclamam as gotas
Que nos fazem renascer
Como as flores , secas curvadas
Que se abrem de par em par
Assim é o meu corpo
Quando o teu por mim passar.

16_10_2009

Um país de Poesia

Às vezes sonho com um país de Poesia
Praças cheias de rosas
Praias cheias de maresia
Um novo mundo sem mal
Corpos feitos de cristal
Sem me falares das desgraças
Nem de contos de loucura
Uma terra em tons dourados
De espigas a bailar
Papoilas no areal
Como se magia fosse
Ver tingir de rubra cor
Este meu pobre país
Que a cada dia que passa
Se torna mais infeliz.

Pela hora das trindades
Tocavam sinos docemente
Havia o pão e as rosas
E um sorriso ficava
Nos lábios de toda a gente.

Mas...tudo fenece rápido
Com a chegada dos tais
Que em meu nome e no teu
Dão cabo deste ideal
E nos transformam a nós
Em triste cortejo de ais.
Moribundo Portugal!

14 outubro 2009

Borboletando

Ele há coisa mais bela
Do que a beleza da poesia
Quando pousa com asas de borboleta
Numa folha de papel?
Uma alegre sinfonia!
Imaginai agora...
Que a poesia tem cor
Tem som
Movimento
Ah! Pois! e tem dor
Dizem-me ao ouvido,
Os meus secretos fantasmas.
Movimento de ondas partidas
Largadas, perdidas.
Som de trovão a bramir
No mar!
Espécie de tropel
Cavalos alados a poisar
De mansinho
Na minha folha de papel!
Voai mais um pouco...
Além...ali
Onde um desejo fatal de pertencer
Mesmo assim a quem tanto nos faz
Sofrer.
Que nunca está lá!
Apenas as asas de borboleta,
pousam com encanto
Num fio dos teus cabelos prateados
E solta-se a magia
Da poesia
Em movimento
Enquanto os meus olhos reprimem
Violentamente o pranto
Todo o sentimento.
Prontos a fugirem
A qualquer momento
Rebentar os diques
Inventar os bosques
Sem terra queimada
E sonho-te assim
Poesia inventada.

Ausências.

Não sei escrever sobre a ausência da cor
Que quase sempre vejo nos teus olhos
Empalidecidos, de tez translúcida
Onde jaz sempre espelhada a dor.
Pudesse eu , insuflar-te na alma
Uma fonte dolorosa e sagrada
Que te iluminasse e sentisses
Como eu anseio ser amada.

Abrasas-me assim, lentamente
Neste torpor sem luxúria
De não te poder sentir
Minguo nesta penúria
Rasgando o senso comum
De abandonares o teu corpo
E sermos apenas um!


Ressoam, ecoam em mim
O Ar, a Luz e a Cor
Mas ando triste, solitária
Eu só te tenho na Dor.

È só na Dor que te tenho
Na dor da incompreensão
Perco-me de mim em ti
Nesta estranha solidão.

O Outro

Vão para ti, amor de algum dia,
os gritos rubros da minha alma em sangue;
vives em mim, corres-me nas veias,
andas a vibrar
na minha carne exangue!

Mas, quando nos teus olhos poisa o meu olhar
enoitado e triste,
vejo-te diferente...
Aquele que tu eras, e que eu amo ainda,
perdeu-se de ti
...e só em mim existe!


Poema de Judith Teixeira, ed. &etc; 1996, que nos idos tempos de 1923, foi apelidada de "desavergonhada" ao corroer os Santíssimos Costumes da PÁTRIA LUSITANA ( AO TEMPO REPUBLICANA E LAICA E DEMOCRÁTICA) .... o gOVERNADOR cIVIL DE lISBOA, AÇICATADO PELA ALTA BRIDA DE UNS QUANTOS ESTUDANTES CATÓLICOS, SEDENTOS DE MÃO PESADA CONTRA A CHAMADA LITERATURA DISSOLVENTE QUE INUNDAVA OS ESCAPARATES, FAZ CREMAR, ENTRE OUTROS EXEMPLARES DAS cANÇÕES DE ANTÓNIO BOTTO E RAÚL LEAL.
ACTUALMENTE A CREMAÇÃO FAZ-SE DE MODO MAIS DISCRETO....

12 outubro 2009

A Louca da Casa

Eis que nascem tortuosos
estes versos feitos a dormir.
Acodem-me ao pensamento
Torturo-me para os refundir!

Desolada diante do papel
sem conseguir enegrecê-lo a tinta
Impaciente sinto-me vazia
Mente rigida esta que não pinta.

Largo-te pena que emperra!
Louca da casa que te escondes
em mil cantos pelejando
crença esta enluarada
solta no vão da janela
onde a razão se esconde
onde apenas se esconde Ela!

Hoje retoco aqui,
amanhã corrijo ali.
Mudo palavras, corto frases
num verdadeiro estertor
uma manta de retalhos
vazio ausente de cor
E a louca troça de mim
gargalhadas estridentes
ecoam pela casa fora
pelo negro corredor
onde surge , lá ao fundo
um fantasma inquisidor
que me acusa sem parar
de lhe ter matado o génio
de lhe ter criado a dor
de cada palavra escrita
afogada neste mar
de escura realidade,
Triste sina esta desdita!