À noite, quando as luzes se apagam, perfilam-se nas prateleiras longas vultos alinhados militarmente , um enorme exército que silencioso comunica entre si .
Havia já algum tempo que me apercebia de tais movimentações e pela manhã notava , que alguns deles tinham alterado o lugar que lhes tinha sido destinado. Dispus-me a ficar de atalaia servindo-me de alguns auxiliares de vigilância.
Na primeira noite, munida com um longo fio de linha cor de café com leite, tratei de marcar algumas dessas prateleiras circundado-as de modo a que ficassem aprisionadas.
Esperei ansiosamente os primeiros alvores do dia que se anunciava cinzentão e desci, pé ante pé, pela velha escada de madeira, que rangia contra a minha vontade; do meu interior saia uma voz que lhe ordenava a ela que se calasse que não rangesse mais a velha tábua carunchosa – tinha de a mandar substituir, mil vezes o tinha pensado e outras tantas o tinha adiado - e que me deixasse, agora também eu uma espécie de clandestina a coberto da madrugada, subrepticiamente introduzir-me no meio do exército aparentemente emudecido.
Finalmente consegui aterrar no sofá de couro , envelhecido pelo uso e cheio de longas estrias claras que lhe sulcavam a pele – até lhe ficavam bem, davam-lhe um certo ar de imponência, aquele que apenas quem percebe dessas coisas de rugas sabe avaliar o que significam e como tal , entende de modo particular o superior significado e designio das mesmas.
Dediquei-me então a olhar com atenção, indagar quem se tinha deslocado do respectivo lugar, inquiri as quotas, os espaços vazios, que a cada noite que passava aumentavam a negra volumetria , fazendo lembrar enormes bocas escuras, desdentadas, prontas a tragar quem por ali passasse desprevenido.
E, não é que faltavam ali mais uns dois ou três exemplares raros?!! Belas capas de cor de carneira, com ferros dourados tinham desaparecido – mas para onde???
Na prateleira do fundo, aquela que tinha as almas guardadas dos escritores de última flor de Lácio, tinha sumido uma edição rara dos Lusíadas e mais além uma outra, com o testemunho de uma vida passada nas Áfricas acabava de cair em combate, espalhada no chão, as páginas outrora ilustradas com gravuras, agora arrancadas, jazia por terra horrivelmente mutilada.
Quedei-me muda, tal era o meu espanto, sem reacção no corpo que se deixou abater no velho sofá de couro, afundei-me então em pensamentos; quem seria o traste, o bandido que ousava assim enfrentar os meus domínios e roubar-me as almas dos que há muito tinham partido e tinham sido confiadas à minha guarda?
As longas linhas cor de café com leite , algumas delas, haviam sido quebradas, outras mantinham-se intactas. Algum corpo se tinha introduzido na sala e tinha roubado mais do que bom par de almas mudas e silenciosas e, eu não sabia como!!!
Mas ...eis que... numa modesta prateleira, já lá mais para o fundo, estava um livro que eu nunca houvera visto, sem quota, um estranho exemplar assim como se fosse uma alma recém -chegada, com capa de cor creme, algo acetinada, uma espécie de veludo, com uma rosa carminada a ilustrar o frontispício; peguei-lhe delicadamente , abri tentando identificar o autor da curiosa prosa que se adivinhava de inicio numa magnifica escrita cortesã , letra pequena, vistosa e elegante.
De imediato percebi que tinha ali a chave do enigma.
Narrava então – e com isto perdi duas noites lendo hipnotizada – a paixão do autor , bibliófilo – pois está claro – e todo o processo em como se tinha tornado um elzeviromaníaco, procurando sofregamente edições realizadas pelos Elzevier e sonegando como se de um cleptomaníaco se tratasse, as almas dos que á minha guarda tinham ficado.
Esta é a história de uma história perdida , que diz respeito a todos quanto amam os livros, aos que tem prazer de os abrir, de lhes sorver o aroma, esse perfume inconfundível que se solta do seu interior , uma espécie de espirito que vive em cada livro e nos narra maioritáriamente na primeira pessoa entre silêncios , sons e imagens que nenhum de nós poderá jamais viver, porque não são as nossas experiências mas sim, os testemunhos de quem para sempre viverá entre mil folhas de papel, exército silencioso e vivo perfilado militarmente nas prateleiras de cada casa que nem a poeira dos tempos fará silenciar.
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