19 outubro 2010

Fórmula Secreta

Terei eu alguma vez ofendido a morte
Que foge de mim deste modo?
Insiste a vida em apostar
Neste sopro, réstea de fulgor
De inspiração
Se expiro é porque vivo e sinto
Ainda o bater do coração
Máquina que me consome oxigénio
E me faz rolar em auto-estrada.
Lá atrás fica o risco branco
Marca indelével da ofensa
Que faz com que fujas de mim
E me obrigues a viver.

Nas bermas amontoam-se agora
Pedaços de gente que nunca nada ofendeu
Nem tão pouco a morte.
Esta,  tratou de as levar , célere.
Enfeitam-se  com frios pedaços
De mármore, por cima das almas
Encaixotadas em branco e negro.

Ah! Mas o sol brilha em fiapos de ouro quente
Eu sinto que as minhas pálpebras  se fecham
Com doçura,
É tão bom sentir-te no meu corpo!
Cadência de inspirar e expirar, lenta
Morna,
Esta sensação de estar bem comigo e contigo
Saindo de mim, aprendi a dar-me.
E não espero nada  - fórmula secreta - 
Da vida, que ela não me queira dar.

18 outubro 2010

Declaração

"Porque os versos não são, como as gentes pensam, sentimentos ( esses têm-se cedo bastante), - são experiências. Por amor de um verso têm que se ver muitas cidades, homens e coisas, têm que se conhecer os animais, têm que se sentir como as aves voam e que se saber o gesto com que as flores se abrem de manhã. " (...) in Os Cadernos de Malte Lauris Brigge, Rainer Maria Rilke, pref e versão portuguesa de Paulo Quintela, 1955, Coimbra. 
Certifico que todas as palavras aqui escritas
Foram antes testadas,
Mesmo que a rima não rime
Que fique despedaçada
Em cada palavra que escrevo
Existe por detrás dela
A consciência plena
De um punhado de vontade
Que luta e sente
Sofre , e se dá
Em cada hora de vida
Por si própria e pelos outros
Que deixam ficar o rasto
Nas palavras aqui escritas
Certificando-me a vida
Por entre alegria e desditas
Das tais palavras que aqui deixo
Assim deste modo escritas

Alma

Alguém ontem  me disse
Que gostava mais da minha alma
D’outrora.
Fiquei a meditar, sem saber que responder
A minha alma mudou-se?
Ou mudou?
Assim como se não sente a morte
Quando vem
Alguém me matou a alma
E eu não dei por nada?
Ainda me vejo ao espelho.
Ainda lá estou.
Mas a minha alma, essa...
Nem a respiração lhe adivinho
Queria tanto ter os teus olhos aqui
Sem ter que perder os meus.
Talvez  assim a poesia fizesse sentido
E a alma não se perdesse
Num espelho embaciado de gelo.

16 outubro 2010

Constelações
















Fizera com que ela se Imaginasse  com corpo de animal . Há seres brutos e há criaturas brutalizadas. Existem animais e bestas. Seres humanos bestiais, sem conotação positiva e animais humanizados. Ele tinha alturas em que se bestializava de tal forma que só lhe apetecia a ela socar até à exaustão as estrelas das Híades distribuídas em forma de V e que representavam o seu nariz .
Respirou fundo, colocou no prato do cd o concerto nº2 para piano, de Chopin, esta era com certeza uma boa opção, o único bálsamo possível para tentar esquecer quem,  em tom inconsequente,  lhe dizia que a espicaçava, sem ela compreender o porquê de tamanha sorte. Sentia as farpas cravadas no dorso. Nesse momento tinha abandonado a postura de canino fiel e submisso e sentia uma estranha revolta a invadir-lhe a mente.
Na sua imaginação desferiu-lhe um golpe directamente na Aldebaran, ignorava onde ficava a outra estrela, aliás nunca tinha conseguido ver o animal em toda a sua plenitude. Sabia que estava obliterado, seccionado, cortado em partes e , tal como uma vulgar sardanisca, regenerava parte da cauda, sempre que lha cortavam. Mas não tinha coração! Estranha besta esta que possuía no alto da sua cabeça um objecto chifrudo, feito de consecutivas calcificações que dava pelo nome de Alnath tinha-a  este atingido no ponto mais vital do seu ser, estava pronta a morrer mal viessem as primeiras chuvas, emprestaria o seu corpo ao rio e seguiria margens abaixo, nem chegaria a esperar pelo equinócio da Primavera.
Decidiu enrolar-se me si própria e ficar sozinha a chorar a desdita, afinal ninguém era digno de possuir o melhor que dentro dela existia.  Os capotes abandonados na arena ensanguentados de tanta luta eram bem o exemplo que o homem não compreendia  o sofrimento que causava ao seu redor; egoísta criatura criava barreiras, e sempre que pressagiava o perigo, refugiava-se atrás de meia dúzia de tábuas de madeira.
Mas pior do que isto era a ilusão…a transferência de emoções e sentimentos para outros animais que nem sequer eram do seu clã. Ela sabia, afinal como mulher que ainda aparentava ser, que o que restava de Aldebaran, apenas se dirigia para outras constelações…lamentável…mas é assim a vida planetária de certas bestas que por cá proliferam.

15 outubro 2010

Trindades

Tu és o mistério de nós dois
Que me condicionas a ser
Existindo neste excesso
Que me vai fazer perder
Esta estranha loucura
Da forma como me sinto
Vou morrendo entediada.
Vendo deslizar as sombras
Em cada dia que finda
e as tardes ensolaradas
Que se vão tão lentamente
Vestindo  de anoitecer.


14 outubro 2010

Coisas simples

Quando alguém como eu é confrontado com o branco de uma folha de papel, sente, mesmo sem querer, a responsabilidade de a impregnar de vida. E porque nas palavras existe vida. Letra a  letra, mau grado a comparação, funciona aqui a caneta, ou o teclado, como uma estranha agulha que norteia e vai bordando com delicadeza. O trabalho final que se pretende pode resultar bem, o inverso também poderá acontecer.
É das teias da alma, das vivências, do caminho percorrido que vamos buscar o fio condutor, poderá ser material singelo, ou ( ocorre-me agora)  fio de ouro ou prata tal como aquele com que antigamente se bordavam os paramentos. Resultava sempre bem, belas peças de arte que ficaram religiosamente guardadas  nos arcazes das sacristias.
Pois tal como esses delicados paramentos, existem aqui ideias bordadas , gravadas nas mais diversas cores e que correspondem a emoções e sentimentos que guardamos na nossa matriz como seres humanos.
Hoje quero falar de gestos simples. Quero sobretudo agradecer desta forma um testemunho de amizade singela que me chegou de terras de Alcobaça, uma espécie de sinal, quem sabe um emissário de Pedro e Inês para que eu não esmoreça, que por muito que a vida seja escrita com fio de burel, haverá sempre quem nos traga uma encomenda de novelos da mais pura seda para que possamos trabalhar as letras e as palavras dessa forma quase acetinada.
Desta forma, ergo em cadinho de cristal, um delicioso néctar  que me embalou docemente  pela tarde fora,  compartilho o sorriso e as palavras, que teci com amizade, agradeço ao emissário e desejo, mais diria, antes sonho, que um dia  consiga eu bordar na folha singela de um livro o meu obrigada pela força que me transmitiu.
Nem sempre a vida faz sentido, outras sim. Gestos simples, como tal perfeitos e isentos,  são gratificantes  para quem dá e para quem recebe. Aqui fica,  não o equivalente a um lenço de namorados, mas a uma alva toalha de chá, repleta de finas iguarias, chávenas de porcelana, e bolinhos de gengibre e canela .
Obrigada Petrarca

12 outubro 2010

As tuas mãos















Olho-te sem que tu saibas
Esses rios azulados
Que passam  nas tuas mãos
Pedaços de vida marcados
Gosto de me demorar
Baixinho
Sem que tu saibas
Os meus olhos
Nessas marcas
Que tanto queria tocar
Crescem-me os olhos
A alma
A dor
O silêncio que já guardo
De te amar em desamor
Subo ainda um pouco mais
E vai pairar  meu olhar
Como águia no espaço
Na curva do teu pescoço
No desenho que aí fica
Imaginário perdido
De me deixares aninhar
Num desejo sem sentido.
Volto triste deste dia
Sempre que a tarde cai
Fico-me assim rendida
Sem poder soltar um ai.

11 outubro 2010

Diga bom dia com....SICAL

Este mundo é, de facto, um mundo de contrastes. Diariamente constato tal facto.
Eis aqui um exemplo por mim presenciado; poderia ser um simples acto isolado, mas acontece deste modo que vos relato  nas mais variadas circunstâncias, em diversas escalas e níveis, no tempo e no espaço.
Estamos em crise, crise de valores, crise financeira, crise...crise...crise; mas não para todos!
A REDEESPAÇO, S.A, é a designação comercial para os quiosques que publicitam e vendem a conhecida marca de café SICAL onde, todos os dias  passo a determinada hora para tomar o meu café acompanhado do folhado de Chaves – pequenos vícios que me insuflam um pouco de energia pela manhã. Muitos dias, muitos meses a frequentar o mesmo local e acaba-se sempre por ter algum convívio com os empregados do estabelecimento em questão. Eu gostava de ser atendida pelo  Igor, um brasileiro de 18 anos , sempre alegre e bem disposto que sabia já de antemão qual o meu gosto ao entrar no referido espaço. Pois o Igor foi transferido para uma outra dependência , parece que do Campo Grande. De quando em vez fazem rotação dos funcionários, não sei se será para não criarem “maus” vícios, não cheguei de facto a entender. Mas vou amiúde observando , neste meu exercício rotineiro, quase tudo o que me rodeia.
Hoje pela manhã vi, com alguma discrição, não fosse o meu olhar atento, um tabuleiro de bolos e outros géneros destinados ao  consumo alimentar a irem para o lixo! Fiquei atónita e questionei, mas será que vão mesmo para o lixo??? Numa época de crise, de pobreza envergonhada, de fome que a cada dia que passa mais se faz sentir, existe por aí tanta gente que de bom grado aceitaria as ditas sobras . Quantas crianças vão de manhã para a escola sem um único pedaço de pão no estômago? Quantos velhos estão em casa apenas com uma magra côdea e um café aguado?
Desperdiça-se comida desta maneira, nem os próprios empregados a podem levar para casa, tudo ali é racionado, que eu bem vejo, a sopa tem determinada medida para ser servida ao cliente, mas se...no final do dia sobrar...deita-se fora!!
Então é assim, deste modo,  que nunca chegaremos a uma sociedade equilibrada, seja de consumo ou não! É este mais um exemplo, a uma pequena escala, de desaproveitamento dos bens e dos recursos à disposição , não equitativa, do ser humano. Não me refiro aqui à fome em África, á guerra no Iraque, aos desequilíbrios gerados pelo Homem, não preciso de sair muito fora de portas, basta estar atento e perceber que nós somos os maiores predadores existentes à superfície do planeta, Até se justificaria se, apenas matássemos para comer; mas não – matamos por prazer e desrespeitamos tudo e todos ao nosso redor. A cada dia que passa,  desaparece mais e mais a noção de que os valores e princípios são essenciais para uma melhor qualidade de vida. Seja numa loja da SICAL, seja em outro qualquer espaço, vale tudo menos tirar olhos!