19 abril 2010

A Italiana

Num país cada vez mais miscegenado como Portugal, cruzei-me, por razões profissionais, com Alda Mazotti, de ascendência italiana por parte do bisavó paterno, mais conhecido como “filho do Masotto” ; em épocas remotas , os italianos adoptaram o costume de os membros da mesma família morarem juntos em grandes casas senhoriais, sendo que o bisavô da senhora era oriundo da “Cassatta Dei Massoti”, ( a terminação em “i” indicava a forma plural). Explicada que está a sua ascendência, que lhe influenciava , e muito, o carácter, Alda nasceu na década de 60 do passado século. Precocemente mulher , casou aos 16 anos, consequência do temperamento e do sangue italiano que lhe corria nas veias, dessa ligação, entretanto terminada, teve 3 filhos, hoje já praticamente adultos.
Temperamento expansivo, volúvel, impossível não dar pela sua presença, Mestrada em Filosofia, as suas aulas eram por demais conhecidas, principalmente pelos alunos que a olhavam destilando libido, não de todo por culpa deles, mas porque Alda gostava de os provocar, independente da idade ou raça.
Tinha um certo fetiche por homens negros - confessou-me um dia - que, depois de 3 caipirinhas dificilmente se conseguia segurar e conter, tais os ímpetos que a assaltavam. Fiquei atónita a olhá-la – confesso!
Normalmente fazia-se rodear por uma corte de septuagenários, aparentemente inofensivos, mas que a faziam sentir menos só nos intervalos das aulas ou de uma outra sua ocupação - era directora de determinada área cultural - embora fizesse todo o trabalho de secretariado, literalmente era pau para toda a obra. Enquanto desempenhava estas funções, a sua voz estridente ecoava e nas instalações da instituição onde colaborava que ficavam silenciosas e até sem graça quando ela não estava. Uma espécie de silêncio de pasmo!
Havia quem lhe chamasse “o canário” lá da zona, Emprestava vida e cor aos locais onde passava, distinguia-se exuberante, e nem sempre com modos correctos; magra, pernas torneadas, meias pretas, uma luxuriante cabeleira grisalha antes de tempo, Alda Mazotto, tinha um namorado a quem apelidavam “guarda Ricardo” – fazia lembrar certos desenhos animados em que as sobrancelhas farfalhudas se destacavam, neste particular o “guarda Ricardo” usava dois pares de lentes, umas de sol e outras para a miopia; evidente que, quando não estava sol, erguia as lentes e usava-as como se de uma pala se tratasse. Era alvo de gozo, pois está claro, tanto mais que fazia da zona verde envolvente às instalações onde Alda trabalhava, o cenário para as suas actividades de jurista, dando mil voltas sempre confinado ao mesmo espaço, agarrado ao telemóvel, resolvendo aparentemente assuntos de maior ou menor gravidade, sempre da mesma forma.
-Um dia relato a vida do “guarda Ricardo”, penso eu aqui para os meus botões, de tal forma que está cruzada com a vida da “Italiana”. Não é este o momento, mas apenas gostaria de vos dizer que Alda e o “guarda Ricardo”, alugaram dois apartamentos na mesma rua, ali para a zona do Bairro Azul, cada um deles depois de um dia de trabalho intenso recolhe aos domínios respectivos. Já não basta a guarda montada a todo o perímetro da Faculdade, alargando-se aos escritórios da área cultural, onde mais parece exercer as funções de assessor cumulativamente com as de namorado. Alda não se preocupa nada com a marcação cerrada de que é alvo, vive a vida a cem à hora, provocante, algumas vezes insolente, sorri para quem quer, embora extrovertida, noto nela um certo lado obscuro, por vezes uma certa forma de tratamento que causa estranheza e desconfiança. Destes cruzamentos de sangue também resultam indivíduos com características algo inusitadas e que nos deixam a meditar sobre o comportamento do ser humano. – Aprendizagem de vida – digo eu !

17 abril 2010

Mensagem

- Vou ver o mar, dizer-lhe que te reencontrei.
- Vai sim! Envia - lhe saudades minhas.
Diz-lhe que sou a mesma,
Apesar de distante,
Aqui continuo, à espera
Que o mar me venha buscar.
Ainda tenho medo, sabes?
Que ele me leve, assim
De repente, sem eu dar por isso!
Talvez mesmo sem querer.
Arrasta-me para o fundo
E deixo de ver o sol.
Nunca mais te vejo!
- Vais ver-me, um dia
Quando passarmos
O grande túnel de luz!
- Juntos ?

16 abril 2010

O Agente Secreto

Há certos pessoas que me fazem parar e observá-las mais atentamente: - o sr. Manuel Luís, homem encarregue da segurança de certa instituição no Porto, possuí um biótipo brevilíneo, braços curtos, pernas curtas e o tronco bastante mais avantajado, barriga um tudo ou nada proeminente contribuindo para alguma volumetria - relembro o que o meu pai dizia em tom irónico: - “Isto não é barriga, é peito descaído!”.
Havia um pormenor que me chamava a atenção: - o bigode já grisalho, farto e sempre em movimento, conforme o sr Manuel Luís estava mais ou menos afadigado! O bigode mexia e remexia, fazia lembrar os bigodes de um ratito às voltas com um belo naco de queijo. Eu ficava como que hipnotizada a olhá-lo.

O sr. Manuel Luís era funcionário de uma firma de segurança, a Gest-Segurança, Ldª,. Em abono da verdade diga-se que gostava das funções que exercia, mas o seu sonho maior era ter sido um agente secreto ao serviço da Policia Judiciáriaou , quem sabe uma outra polícia qualquer, daquelas mesmo importantes.

Quase diariamente era atacado por fúrias e raivites agudas. Enervavam-no e tiravam-no do sério, ele que até era um homem pacato, mas só até ao momento em que o “seu” Sporting perdia com o Benfica - aí ficava possesso! Excepção a tais situações, era quase sempre bonacheirão e simpático, sempre solicito na ajuda.

Muitas vezes fazia de “homem-sombra” quando algum visitante menos correcto entrava no palácio e o ignorava, colava-se a ele, seguia-o teimosamente, transformando-se todo o seu semblante e passando metaforicamente de rato a cão quase feroz, inquiria-o agitando freneticamente o bigode , olhar fixo e vozeirão : “O que é que o senhor deseja?” – Isto depois da “presa” estar já confusa e desorientada.
Recentemente vi-o numa demanda conjuntamente com efectivos da PJ, montar um posto de observação a partir das janelas de uma dependência da instituição; o objectivo prioritário era identificar e desmantelar uma rede de falsificação de passaportes, operação essa que foi levada a bom porto e em que o sr Manuel Luís colaborou com muito gosto. Soube identificar a preceito quem eram os traficantes – fruto de muita e maturada observação.
No dia-a-dia o sr Manuel Luís combate tal como D. Quixote não contra moinhos de vento - , mas os seus moinhos, perdão os seus alvos, são outros; condutores teimosos e irreverentes que estacionam à moda de Lagardere, dentro do espaço destinado ao parqueamento de viaturas. Todos os que ali chegavam arrumavam os veículos como entendiam e o assunto era seríssimo! Não podiam chegar e estacionar como entendiam. O sr Manuel Luís luta diariamente, quase que em desespero de causa, para manter o espaço em boas condições. Desde o Ministro ao estafeta, todos tinham o mesmo direito e como tal a democracia é para ser exercida- doesse a quem doesse! Ordens são ordens, e são para se cumprir- dizia alto e bom som!
-Não tenho ordens da Direcção para abrir excepções, como tal o senhor, ( dirigia-se , desta feita, ao motorista do ministro Y) tire já daqui o carro para fora!
O motorista olhava-o com ar insolente e respingava! Perdiam-se em diálogos infinitos multiplicados e divididos por outros tantos motoristas, de ministros ou não.
Quando chega o fim do turno O sr. Manuel Luís fala amorosamente dos netos e sente-se na voz a ansiedade de rumar a casa, para junto da família. Aí pelas 8 da noite finalmente os movimentos do bigode aquietam-se, cessam subitamente e apenas se ouve uma melodia no ar – o seu assobio, pleno de vibração; dias e dias de tarefas cumpridas com a satisfação do dever cumprido.

12 abril 2010

Sr. Hulot à portuguesa

Augusto José Rainho, funcionário aposentado do Banco de Portugal, era homem de grande porte, o seu metro e quase noventa, olhos de peixe e nariz aquilino e barriga proeminente aconchegada por suspensórios que esticava como se fosse uma fisga, fazia-me lembrar vagamente Jacques Tati no papel de sr. Hulot. Sempre pontual, exigente consigo próprio , mas muito mais com os outros. Aqui entre nós, diga-se que era sensível ao sexo feminino, um belo par de pernas não lhe passava despercebido e havia até quem se perfumasse e colocasse batom bem vermelhusco, quando ia a despacho.
Todos os anos em Agosto, rumava à estância balnear mais conhecida pelo “bidé da senhora marquesa”, não sem antes de, fazer a vida negra a meia dúzia de subordinados na Junta de Freguesia para onde tinha sido eleito pelo partido.
Em tempos idos, os do Estado Novo, tinha sido alto graduado da MP, e continuava a nutrir uma secreta admiração pela instituição, coleccionando secretamente tudo quanto dissesse respeito à mesma.
Reuniam-se ele e mais colegas , ao fim da tarde, e relembravam os bons velhos tempos; no dia seguinte procurava aplicar alguns dos princípios que lhe tinham ficado em agenda da memória.
Os funcionários perfilados, quase que lhe faziam a continência, mas por detrás, abandonavam-se em risos ou em queixumes conforme a ordem do dia.
Sentado na sua secretária, pejada de papéis, preenchidos com letra miudinha, deleitava-se horas a fio redigindo tudo o que fosse passível de ser redigido, desde relatórios a noticias para o Boletim da Junta, passando pelos Ofícios e todo o expediente geral . Gostava de exercer o seu poder, levando com isso a alguns ódios.
Nos dias de verão aplacava a sede com refresco de capilé que a D. Maria de Lurdes de belos olhos azuis fazia questão de lhe levar. Agradecia grosseiramente. E, ela quase que o venerava, tinha-lhe quase um medo ancestral – diria!
Seguidamente, entrava no gabinete Maria da Purificação Martins, figura pequenina, roliça e matreira - minutos antes besuntara-se de batom a contento, passara um pente pelo cabelo cortado “à la minute” ; ia a despacho, bamboleante e presunçosa. Era ela que se ocupava da contabilidade da Junta e fazia o IRS ao sr. Augusto Raínho; não só mas também alguns outros serviços; mais do que aqueles que muito gente pensava à época.
O sr Raínho era sovina e, se fosse preciso poupar em agrafos, clips ou folhas de papel A4, podia sempre contar com a colaboração da Maria da Purificação que, contabilizava as entradas e saídas dos agrafos e demais material de escritório,
Por vingança, certo dia, alguém colocou cola na tábua do w.c,, deixando o sr Raínho possesso e de traseiro mal-tratado; apenas um exemplo das maldades que o pessoal menor, sempre que podia e que tinha oportunidade se dedicava a executar, talvez um pouco para aliviar o ambiente soturno que a Junta de Freguesia tinha em horário laboral. Não mencionando a célebre caixa de fósforos que continha um séquito de pulgas não amestradas, e que foi largada na periferia do seu assento quotidiano! Muito se deve ter coçado nesse dia, a ponto de, finalmente aceder a que uma esquipa de desratização viesse exterminar os ratos que pululavam nas instalações.
O sr. Raínho tinha imenso orgulho nas suas duas filhas, e aquando do divórcio e do escândalo de lavagens de dinheiro que vieram a público de um seu genro, experimentou um estado de desanimo que o levaram a um declínio físico, meses mais tarde esse abatimento prostrou-o. Obrigou-o o médico a que ficasse em casa , de baixa médica – algo que ele nunca tinha concedido aos seus funcionários.
Poucas vezes o vi depois disso, de quando em vez pergunto aos amigos em comum por ele, dizem-me, já pouco sai à rua, que por lá está, sentado no sofá, já sem a sua enorme barriga, agora magro e seco, fazendo do seu corpo um cabide para os fatos que lhe bailam no corpo. De facto a velhice, começa também por ser um estado de alma que se instala lentamente, sem nós darmos por isso. E na vida tudo passa por nós e nós pela vida, há pessoas que deixam saudades, outras nem por isso. Confesso que pela minha parte, saudades minhas leva-as o vento.

08 abril 2010

Palavras em fuga

Ainda há bocado passou por aqui uma palavra a fugir!
Já não me recordo qual, levou a frase inteira com ela.
Perdi-lhe o sentido. Agora, só esperando que regresse.
Talvez em cachos como as uvas. Gosto de as tragar uma a uma.
Senti-las esmagar na minha boca. As palavras.
E quando elas vêem, assim em catadupa, qual vulcão de lava
Incandescente, abro-me por inteiro e abandono-me ao gozo
De sentir que através delas vim até a este momento. Aqui.

07 abril 2010

Post aberto à Revista Ler

Dei por mim a pensar... que a Revista “Ler” deveria também incluir literatura que, ( e citando Inês Pedrosa) é aquilo que resiste ao marketing- não poderia eu estar mais de acordo com esta afirmação - Muito bem!
Sucede que não me parece que assim seja. Ah!... na edição de Abril de 2010, pode ler-se o artigo de Pedro Mexia ( na Biblioteca Fútil) ...”Parece que é Cluster”...pois....!Tal como refere Manuel Alegre "O mundo literário às vezes irrita-me porque sei o que são os compadrios. Quanto se entra na maldicência, é mesmo para magoar e para matar."
Já sei que não me vão responder, mas muito gostava de saber porque não dão destaque a autores que não sejam sempre os mesmos?? ( Os da moda, os apoiados pelas máquinas poderosas de marketing)
Li o artigo sobre Auto-ajuda para escritores, mas depois quando estes escrevem...quem os apoia ou publica? Naturalmente será mais fácil um camelo entrar para o reino dos Céus!
Outra coisa....LIVROS NO TOP....( mais reticências)...FNAC ( 10 os eleitos- pessoalmente atraiu-me sobremaneira a Antologia Resumo – A Poesia em 2009 ) e BERTRAND ( mais 10 )...quais os critérios aplicáveis? É que parece mesmo pescadinha de rabo na boca. Portugueses quase sempre os mesmos, liderando à partida José Rodrigues dos Santos - é obra literária a escrita do JRS – pergunto?!tem um tal peso cientifico que segundo alguns critícos deveria figurar como uma quase obra de refrência ao apoio escolar.Não lhe retiro absolutamente nenhum mérito como Jornalista, mas haverá por aí outros candidato/as igualmente merecedores . Bem, e como nem só de escrita literária vive o homem, há que engrossar os extractos bancários das Livrarias e Editoras, é caso para dizer que tiram o escalpe a quem se esgota, sem quase comer ou beber, parafraseando Rui Cardoso Martins.
Nove páginas inteirinhas dedicadas a Manuel Alegre. Que tal dar um pouco deste espaço a outros talentos; autores que não sempre os mesmos, há escritores que não tem o direito de entrar nas vossas páginas, muitas vezes o estigma da idade deita-os abaixo, só se tornam mediáticos todos aqueles que tenham nascido no pós-25 de Abril? Já pensaram nisso? Alargar horizontes e deixar entrar uma lufada de ar fresco....o Dr. Manuel Alegre não ficaria melindrado, suponho.
O negócio dos Editores e Livreiros contraria o estado de declínio do País - parece-me a mim e, se assim for muito bem, mas...em articulado mais uma “coisinha”, quanto custará às Editoras e aos Autores, expor um livro numa montra da Bertrand? ?Quanto custa a prateleira da frente e a do lado? Os Tops, os Destaques? Assim sendo como diz Paulo Ferreira e Nuno Seabra Lopes, os livros também têm "prazo de validade do Yogurte".

Lava

Eis-me aqui presa
Nesta memória amarga
Que não me deixa ser Eu.
Após que foi quebrado o feitiço
Resta-me sonhar-te, em vigília.
Quando adormeço perco-me
De ti e de mim.
Deixo de saber onde estou.
Talvez nem sequer exista!
Sabias que é assim esta espécie de doença?
As úlceras, no corpo e na alma.
É assim que começa o caminho do fim.
Pouco me importa se alguém me lê,
Sucede que não escrevo para ninguém
Apenas me gosto, quando gosto de ti
E por tal facto
Sinto que ainda estou viva, apesar de
me fazeres morrer aos poucos.
Disseram-me, que o Amor e a Loucura
Geram em segundos, vulcões de sofrimento.
É essa lava ainda quente que me mantém
O sangue a circular, cá dentro.
Lá fora está frio, congelado que está o mundo
Parado, em suspensão, liquefeito,
À espera do milagre da Vida.
Mas creio mesmo que já é tarde.
Toda a energia que se desprende de ti
É negra.
Quando me tocas trazes asas de anjo
Negro.