29 maio 2012

O Caçador

Foto de Adriano Soldatelli
          Cabelo curto e já grisalho, tez morena e olhar furtivo. Quase sempre a camisa fora dos jeans e nos ombros o pullover como que a abraçá-lo. Em tudo o mais não permite que nada o envolva, nem tão pouco abrace. Tornou-se  anti-social, quase selvagem; deixou de saber conviver com o mundo. Um dia, vá-se lá saber o porquê, decidiu isolar-se na sua torre de concreto e, dali, ficar a vigiar o horizonte.
          Mantém ainda algum  contacto com o exterior através do velho aparelho anguloso e de cor preta, de onde sai um  cordão entrançado e  grosso como um dedo da mão,  envolto em algodão estafado, qual cordão umbilical que liga e religa a seu bel-prazer.      Ao fim de tantas palavras em que já não acredita dá-se ao luxo de, com um sorriso fino a dançar-lhe nos lábios e a névoa a escurecer-lhe o olhar, cortar a ligação. Malandros – exclama ele numa espécie de rosnanço que pensa ainda ser feroz.
           Do outro lado da linha sobra, por vezes, uma espécie de travo amargo.
Faz pena sentir que é constantemente  assaltado pelo tédio e pela melancolia. Uma vida inteira preenchida, vivida intensamente como se não houvera amanhã . E ele sabia que não havia. Hoje é uma espécie de morto-vivo em contagem decrescente para a sua última aventura chamada morte.
            Pelas profundezas da mente ainda passam  as memórias gloriosas de uma existência agitada a fazer lembrar imagens de auroras boreais. Recorda com saudade  corpos nacarados de pele macia e todo ele a consumir-se neles, a arder em paixões e  emoções momentaneamente incontroláveis. Uma espécie de fogo fátuo a queimar a alma, a degradar-se dia a dia, a chegar a um fim que não tinha previsto.
           Não sei se alguma vez soube o que era o amor. Pelo menos não soube amar, e  amar outrem para além de si próprio. Na luta travada diariamente existia sempre  a tentativa desenfreada de autocontrole que descambava depois,  e sempre, em consumição de novos corpos que  anestesiavam o seu desejo. Acabou por se esquecer , primeiramente dos outros, e finalmente de si próprio. E foi assim durante meio século.
           A procura de uma ética é um itinerário que pode paradoxalmente, matar. Não é, por isso, paradoxal que as regras de substituição da ética individual, como a moral religiosa, matem uma vida de experiências limites.
Mas até as suas convicções religiosas eram as de um não praticante: não passava do limiar do templo.
            Enquanto profanou corpos e almas esqueceu-se que uma vez saqueador, o seria pela vida fora. Não havia redenção possível.
Tinha saudades da juventude. Dedicava parte do tempo a olhar, furtivamente,  as raparigas de carnes frescas e rijas , uma espécie de voluptuosidade ondeava-lhe pelo corpo semi-adormecido; mas era o único gozo que conseguia  obter.
            Como caçador furtivo que era, não olhava a presa directamente nos olhos. Tinha medo de si próprio e dos outros. Vivia aprisionado no que – dizia ele- era a moral e os bons costumes. Fruto de muita meditação, o desapego era já uma constante e a procura de desidentificação com o imenso ego redunda em nova procura de si,  parte de uma feroz disciplina auto imposta. Tudo   preferível para que de novo não voltem   a magoá-lo.
            Nada mais arriscou na vida. Até que a própria vida saturada de uma não dinâmica existência tomou conta dele e aplicou-lhe o golpe fatal. De caçador passou a presa.

21 maio 2012

Cor Púrpura


Quem me dera a mim outro destino.

Porque te falo de ódios, e amores, de dias cinzentos e de momentos em que o fôlego cessa.

E porque todas as horas me matam e de mim apenas nasce o cansaço.

Quem me roubou a minha solidão a troco do nada? Que ficou no lugar dela?

Sou de uma nova raça de pele cor púrpura com vestes de desejo.

Já nem espelho sou, tão embaciada em mim anda dor.

Contudo sei-te de cor de tanto te reinventar: continuas a existir em mim.

Pertenço a um estranho corpo místico, porque odeio a minha carne.

E Pai perdoa-lhes, que também eles não sabem o que  fizeram
ao matarem-me a esperança

assassinaram também o desejo.

Agora tacteio na tua alma, de olhos cegos – os teus e os meus.

Já esqueceste quando eu te disse que era tua, e contudo foi tão pouco, porque eu queria mais e mais.

Se eu fosse um perfume que impregnasse o teu imaginário e te deixasse em ti a sede

De um cio incontinente.

Mas nada disso sou, aconteço aqui e agora num supremo espasmo que desagua no mistério.

De não saber do teu desejo, de não saber de ti, de não saber de nós.

Ardo esquecida numa espécie de altar, punição de ousar o sonho

E porque te ousei amar, a ti coleccionador de nomes e de corpos.

E agora digo, com base na memória que a tua pele sabe a Verão, ao calor dos frutos amarelos, quando te beijava o corpo impaciente, quando a minha boca te envolvia em sedas, com gosto a sal das marinhas, com gosto do doce dos ananases e o halo da sombra das palmeiras, onde crescem cachos de bananas que a minha mão acaricia leve.

Tudo isso eras tu no sonho. Irrompias em pedaços de espuma e refrescavas a nova raça dos seres de cor púrpura.

13 maio 2012

As Palavras





As palavras são como seixos que rolam
Pelo leito  turbulento dos ribeiros
Somos nós, humanos as margens
Seremos nós do mundo luzeiros
 Reflectidos nas águas cristalinas
Agarremos as palavras
Transformemos em estandarte
Bandeira das 5 quinas.
Brotam da fonte obscurecida
Quebram o limbo do silêncio
Alimentam pelo caminho
Desde a mais bela flor
Até à erva daninha
As palavras chegam à foz
Transformadas em areal
Uma areia tão fininha
A beijar solo sagrado
Deste nosso Portugal

09 maio 2012

Meditação


"Ek Ong Kar
Sat Naam
Kartaa Purkh, Nirbhao Nirvair
Akaal Murat
Ajuni, Saibhang Guru Prasaad Jaap
Aad Sach, Jugaad Sach
Hai Bhee Sach, Nanak Ho Si Bhee Sach
Nanak Ho Si Bhee Sach"*

* texto em Sânscrito.

 
O que é a vida senão uma longa caminhada
Uma semente que se transforma em fruto
Com que destino, com que finalidade
Para se acabar em nada?
Para quê a beleza, se murcha célere
Porque nos dão quimeras
Porque nos esforçamos tanto
Se chega um momento  em que somos pó
E acabamos num qualquer canto.
A música, a pintura, a dança
De que nos servirão
Se neste caminhar há tanta servidão?.
De que serve sentir como  esteta
Se a vida  é cruel e os sonhos intersecta
Que sentido faz viver assim?
Quando somos invadidos por segundos
Que apenas uma coisa é certa
Que tu e eu seremos pó, cinza e nada
E que não haverá nova alvorada.
Serão estes versos tristes?
Não, apenas a realidade
A vida nos dá o sonho
A morte nos rouba a vida
E  sendo tudo assim tão certo
Porquê existe  tanto pó
Misturado com maldade?

Maria João Nunes ( Inédito)


05 maio 2012

O canto do cisne



Há um canto de cisne neste meu amor
Aproxima-se o fim, já  sinto o torpor
E este negro animal assim me vai invadindo
Mesmo que seja primavera
E as andorinhas agitem o horizonte
Anunciam em vez de flores
o fim  desta quimera.
E secam-se nos meus olhos todas as fontes.
A negra sombra avança sobre mim
E cobre-me com as suas longas asas
Feitas de tempo
E porque por tanto tempo
Naveguei nas asas do sonho
e fiz de uma gaivota o meu corcel
andei de mar em mar
de navio em navio
noites sem dormir
e o sonho preso por um fio.
Há um canto de cisne neste meu amor
Um piar de fénix amortecida
E já quase em desatino e desalmada
É chegado o momento da partida.
Liberta serei já que fui cativa
De uma vida desencantada.