Cabelo
curto e já grisalho, tez morena e olhar furtivo. Quase sempre a camisa fora
dos jeans e nos ombros o pullover como que a abraçá-lo. Em tudo o mais não permite
que nada o envolva, nem tão pouco abrace. Tornou-se
anti-social, quase selvagem; deixou de saber conviver com o mundo. Um
dia, vá-se lá saber o porquê, decidiu isolar-se na sua torre de concreto e, dali,
ficar a vigiar o horizonte.
Mantém
ainda algum contacto com o exterior
através do velho aparelho anguloso e de cor preta, de onde sai um cordão entrançado e grosso como um dedo da mão, envolto em algodão estafado, qual cordão
umbilical que liga e religa a seu bel-prazer. Ao fim de tantas palavras em que já não acredita dá-se ao
luxo de, com um sorriso fino a dançar-lhe nos lábios e a névoa a escurecer-lhe
o olhar, cortar a ligação. Malandros – exclama ele numa espécie de rosnanço que
pensa ainda ser feroz.
Do outro
lado da linha sobra, por vezes, uma espécie de travo amargo.
Faz pena sentir que é constantemente assaltado pelo tédio e pela melancolia. Uma
vida inteira preenchida, vivida intensamente como se não houvera amanhã . E ele
sabia que não havia. Hoje é uma espécie de morto-vivo em contagem decrescente
para a sua última aventura chamada morte.
Pelas
profundezas da mente ainda passam as
memórias gloriosas de uma existência agitada a fazer lembrar imagens de auroras
boreais. Recorda com saudade corpos
nacarados de pele macia e todo ele a consumir-se neles, a arder em paixões
e emoções momentaneamente incontroláveis.
Uma espécie de fogo fátuo a queimar a alma, a degradar-se dia a dia, a chegar a
um fim que não tinha previsto.
Não sei se
alguma vez soube o que era o amor. Pelo menos não soube amar, e amar outrem para além de si próprio. Na luta
travada diariamente existia sempre a
tentativa desenfreada de autocontrole que descambava depois, e sempre, em consumição de novos corpos
que anestesiavam o seu desejo. Acabou
por se esquecer , primeiramente dos outros, e finalmente de si próprio. E foi
assim durante meio século.
A procura
de uma ética é um itinerário que pode paradoxalmente, matar. Não é, por isso,
paradoxal que as regras de substituição da ética individual, como a moral
religiosa, matem uma vida de experiências limites.
Mas até as suas convicções religiosas eram as de um não
praticante: não passava do limiar do templo.
Enquanto
profanou corpos e almas esqueceu-se que uma vez saqueador, o seria pela vida
fora. Não havia redenção possível.
Tinha saudades da juventude. Dedicava parte do tempo a
olhar, furtivamente, as raparigas de
carnes frescas e rijas , uma espécie de voluptuosidade ondeava-lhe pelo corpo
semi-adormecido; mas era o único gozo que conseguia obter.
Como
caçador furtivo que era, não olhava a presa directamente nos olhos. Tinha medo
de si próprio e dos outros. Vivia aprisionado no que – dizia ele- era a moral e
os bons costumes. Fruto de muita meditação, o desapego era já uma constante e a
procura de desidentificação com o imenso ego redunda em nova procura de si, parte de
uma feroz disciplina auto imposta. Tudo preferível para que de novo não voltem a magoá-lo.
Nada mais
arriscou na vida. Até que a própria vida saturada de uma não dinâmica
existência tomou conta dele e aplicou-lhe o golpe fatal. De caçador passou a
presa.
2 comentários:
Arrobamiga
Eu já fui caçador, hoje estou preso por falta de licença para casar, com ç.
A sério, é um belo texto, mais um, alias. E, de passagem, uma informação:
O noticiado sobre o falecimento da nossa TRAVESSA é absolutamente falso. Podes ir lá para comprovar a mentira posta a correr pela oposição que ninguém sabe quem é.
Qjs
Boa prosa. Pena ser ficção.
Na vida real os caçadores serão sempre protegidos pelo sistema, pela moral vigente, pela aceitação das vitimas... Um dia mudará, mas não me falaste no futuro.
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