27 janeiro 2011

A Poesia



Stella Bianco - “Menina de vestido rosa” - Óleo sobre tela.
A poesia não têm coerência
É impaciente.
È uma espécie de fogo fátuo
Que aparece à gente.
A poesia é filha da revolta
Tendo por madrasta a mágoa
Não se lhe conhece o pai
Criatura detestável.
A poesia despreza
Tudo o que não é belo
E consegue por si só
Fazer da maldição
O prelo
Plano liso, mármore
Onde se coloca a composição
Que a poesia dá à luz
Fruto da solidão.
Mas não queiram ser poetas
Esses seres tão singulares
Heróis de quimeras perdidas
Em busca dos sete mares
Das mais estranhas alegorias.
A poesia têm um preço
Mil anos de solidão
E sempre a alma a pairar
Pelo vazio dos dias
E pela negra escuridão
E dói, sabiam?
É como espinho cravado
Sem o poder arrancar
E a poesia é de quem
Sempre soube o que era Amar.

Tu que foges das emoções,
Dos sentimentos mais nobres
Que jogas nas palavras
As acções já de si pobres
Não ouses pensar sequer
Que vais a algum lado
O futuro te condena
A seres alguém sem passado.

E porque um povo,
Uma casa, uma pessoa
Que não saiba respeitar
E enterrar o passado
Nunca terá futuro
E viverá amargurado.


Deixa a poesia voar
Entrar livre pela janela
Faz da poesia o teu sol
Pinta a vida da cor dela.

Sorri, mesmo que chores
E que a tua alma seja
Um pedaço de cristal
Partido em mil pedaços
Abraça a poesia e diz-lhe
És a musa dos meus espaços.

* "Quando o real é incapaz de valer como tal, torna-se necessário desdobrá-lo num segundo sentido, para impedir a sua dispersão". escreveu Starobinski a propósito de Baudelaire

25 janeiro 2011

Alma ao Vento


Vincent van Gogh

Hoje sou a cidade inteira
Possuída por mil criaturas
Esventrada em passo lento
Praças abertas ao Tempo
Onde se cruzam amantes
E nos caminhos sombrios
Luz da lua aprisionada
Libertam-se os lamentos
De uma moura encantada.
Arvorada lá no alto
Ondula a minha alma ao vento
No torreão cimeiro
Da cidade em movimento
E em cada colina verde
Pontilhada de azul
Avista-se o rio imenso
A dirigir-se ao sul
Leva saudades minhas
A transpor a claridade
Brancas velas que flutuam
E partem para a eternidade


24 janeiro 2011

Diabólico


Dido observando Eneias a partir, Pintura a óleo de autor desconhecido
Descubro afinal que nada tenho de meu
A não ser esta dor fina que me faz sentir viva
Esta estranha louca à deriva
Este não meu sentir o teu
E depois?
Depois sonho ainda, com o gosto da tua boca
Em passo lento sonho
O toque da tua mão
Que me faz soltar a voz rouca
em momento de paixão
E semicerro o olhar, já de si tão quebrantado
Senhora sou de destinos vácuos
Simulacros
Corcéis alados
Anjos diabólicos.
Pactos escaldantes
Sinos, campainhas
Estas vozes rutilantes
Eternos peregrinos
Loucos amantes

21 janeiro 2011

O Grito


Munch - The day after : Exibido  no Museu Nacional da Noruega, em Oslo,  óleo sobre tela feito em 1894-95.

Ficaste assim adormecido
Em negro silêncio
Fundo animal ainda a palpitar
Enquanto o meu corpo descansa
Desse imenso velejar

Deitaste à terra a semente
E por lá ficou a germinar
Aninhou-se no casulo
De mil fios a tecer
Num vai e vêm sem parar
Acabou por perecer
Não sem antes ter gritado
Não sem antes ter vibrado
Erguendo as mãos para o céu
Para finalmente acabar
Num espasmo cor de bréu.

18 janeiro 2011

Tempestade

Sempre presente esta dor
insólita mistura ondulante
recordação poente
Misto de prazer evocado
em corpo perdido de amante

Um latejar latente
Uma solidão que invade
Na linha do horizonte
Avança sobre mim como a noite
Cai sobre o vasto poente
E não há estrela a brilhar
Que consiga por um instante
Essa memória apagar.
Obsessão surda que me possuí
Sem saber para onde ir.
Espero dia após dia
Que o tempo apague e me cale
Este delirio febril.
São assim as minhas noites
Toldadas e decadentes
Braseiro a arder na bruma
Ondas e ondas ao longe
vagas de mar sem espuma.

O Desejo

Abel-Dominique Boyé - 1864
Há uma outra em ti que te viveu,
Que te consome ainda,
Que te ocupa cada espaço,
Cada pedaço de existência
Que te deixou nostalgia, amarga
recordação,
Que secou no teu peito
O bater do coração.
Que ciúmes sinto eu, dessa outra
com quem viveste as noites quentes
de verão, o riso do sol a bater na vidraça
A luz do luar a bater no chão.
Esse chão onde se amaram em momentos infinitos
Sempre e até à exaustão.
Agora resta-me esta garra de águia presa na garganta
A sufocar-me , a calar-me, e a dizer-me não!
Já não há sorrisos no olhar,
A cidade já não canta
E o teu perfume está distante
Já nem o posso cheirar, proibida como estou
De assim te poder amar.

Faz-me tanta impressão olhar para aquele retrato
E ver-te aprisionado às memórias do que foste
Aprisionado de facto.
Que será feito de ti? Onde te escondes agora?
Atrás desse vidro frio que guarda vigilante
As memórias de outrora?
Deixa-me tocar-te um pouco, apaziguar o desejo
Quebrar essa moldura, rasgá-la em mil pedaços
Mandá-la prá sepultura,
É lá que ela deve estar, onde estão as coisas mortas.
Sai da fotografia e vive, antes que seja tarde,
e a morte nos abra a porta.
Há em mim ainda um leve restolhar de natureza
Uma espécie de terra molhada e ardente
Coberta de folhas de Outono
À espera da Primavera para fecundar a semente
Um chão sagrado pela dor
Um campo imenso a perder de vista,
Lá longe no horizonte estás tu e ela...
Sempre ela a chamar por ti
E tu a peregrinares, sozinho pela terra imensa
À procura do que foste, corcel em trote
à desfilada, na procura, do corpo dela
Dedos de veludo ânsia de doce desvario,
E eu adivinho, quase que pressinto
Nas tuas mãos que me acenam de longe,
Um triste fim de silêncio e frio.

08 janeiro 2011

Violões e cordas de ouro e guitarrinhas de prata

"A Tocadora de Alaúde", obra barroca pintada a óleo pelo italiano Orazio Gentileschi (1563 - 1639)


Enlaça-me com a corda do violino,
dá a volta e faz um nó
Um nó cego sem ter volta
Arrasta-me pelo chão,
Num apertar convulsivo
Toca-me, faz-me subir
Nesse teu tom compassivo
Rasga-me o peito com o arco
Como se de uma seta acutilante
Fino ariel, estilete
Me deixasse suplicante
E volta, uma vez mais e outra
E ainda e só mais uma volta
Sobram só mais duas cordas
Que cruzadas no meu peito
Fazem do meu coração
Um boomerang perfeito
Atira-o para bem longe
Que não volte nunca mais
Ao solitário leito.

Pausa


MusicPlaylistView Profile
Create a playlist at MixPod.com

05 janeiro 2011

Fadário -


Deixei-te à pouco, entre fios delgados de saudade, à mistura com a chuva
A única que me toca com piedade.
Entre mim e aquele sem-abrigo ali deitado, na escadaria esfarrapado,
pouca diferença haverá, ambos perdemos a alma , ambos a viver a vida
Por detrás do arame farpado.
Que perdoem os que  estiveram lá,  no campo de concentração,
Algures um qualquer sitio degredado
Há por detrás das grades muito mais ânsia de liberdade quando o espírito voa
Mesmo desalmado
Do que estando eu em campo livre, aberto, cheio de sol ou luar,
Mas não conseguindo despir  esta tristeza que me aprisiona
E me conduz a este fado, a este meu infinito pesar.