30 setembro 2010

Retratos de Lisboa

Tardes lisboetas na zona da Baixa são um pouco o espelho da Nação. Largo de S.Domingos pejado de estudantes caloiros em praxes sem sentido, embriagados em sonhos e copos de ginginha, à mistura com emigrantes oriundos das sete partidas do mundo. Estes últimos transaccionam de tudo um pouco, (passaportes,  diamantes,  telemóveis e cartões furtados,) ao incauto que por ai se movimenta. O sol vai bafejando estas gentes, tornando-lhes a vida menos penosa, não obstante a dívida externa que diariamente aumenta,  em cerca de 100 euros por cada português aqui nascido e criado.
Chega-me  os sons da rua das Portas de Santo Antão, um grupo de quatro cabo-verdianos toca e encanta os passantes com mornas que adoçam a pedra da calçada à portuguesa; desta feita o mais jovem, filho de um dos elementos do grupo,  uns 4 anos  de existência, marca o ritmo e ginga ao som do batuque. Não deixo de sentir ternura e sorrio ao ver ao a sua espontaneidade de criança, num mundo de adultos sem  nexo aparente. No entrada  de certa instituição das redondezas, sentados nos degraus de pedra , em amena cavaqueira decorre a  conversa entre vários elementos: um "segurança", o vendedor  de castanhas  e  gelados,  (embora no mês de Setembro intercale com férias, fruto da mudança de estação, não demorará a chegada de Outubro e o cheiro da dita castanha assada), juntam-se-lhe o motorista do edifício ao lado, o construtor civil e o empregado de mesa que saiu às quatro da tarde – falam de futebol e da politiquice rafeira.
Alguns turistas  imobilizam-se em    frente ao estabelecimento da  ginginha das Portas de Santo Antão, num círculo alargado,  copo de plástico na mão, assistem atentos ao concerto improvisado distingue-se o som de “Angoláaaaa.... angoláaa”. Melodias plenas de nostalgia, alguns, parcos euros caiem nas caixas das violas, onde uma t-shirt aberta com os dizeres “Cabo Verde” convida a deixar o  contributo.
As esplanadas estão cheias de gente ociosa, desfrutando não sei que belezas arquitectónicas citadinas,  porque esta mesma  cidade continua  decrépita e suja.
Deambulando pelo Largo de S. Domingos, cruzamo-nos com gentes ligadas ao debate público, uma espécie de “Corredor do Poder” popular,  de microfone na mão com a finalidade de convidar a população a participar e a dizer de sua justiça  apresentando ideias e sugestões para melhorar a vida política do País;  há mendigos dormindo placidamente um sono que seria de justos, não fosse as injustiças da vida, obrigando a  que qualquer pedaço de chão sirva de leito.
E existem os pombos às centenas, sobrevoando tudo e todos em busca de cada migalha milimétrica, fazendo uma guerra silenciosa com os pardais da cidade.
Dia após dia a cidade vai sobrevivendo, um marulhar imenso de gentes que  entra e sai para trabalhar. A Praça D.Pedro IV , por volta das sete da noite começa a ficar vazia e à noite as ruas da Baixa tornam-se isoladas e perigosas,  abrigo de marginais, toxicodependentes  e sem-abrigo que todos os dias aumentam por aqui.Também deste lado do Rossio um grupo de músicos da América-Latina costuma animar as tardes, em frente à entrada da estação do Metropolitano, findando a tarde, fazem as malas e carregam a carrinha para outras paragens.  São estes alguns dos muitos retratos de Lisboa.

29 setembro 2010

Formigas








O Metro já não é só o que era. A tradição também o não é. Nem Bruxelas é apenas uma couve, nem o metro é apenas uma unidade de comprimento.
Aliás ocorre-me dizer que são várias unidades de comprimento, neste caso estandardizado,   ligadas entre si, imagino que por uma espécie de ganchos que encaixam uns nos outros. Quem movimenta todas estas unidades é o maquinista, espécie de toupeira que saí em de x em x tempo à luz do dia para carregar as baterias.
Mas não quero falar nem das toupeiras, mas  sim,  do carreiro de formigas, animais diligentes e que a maior parte da espécie humana decidiu imitar a nível comportamental.
Assusta-me a formatação a que assisto diariamente, transformamo-nos em formigas no carreiro, num vai e vêm constante; socialmente não interagem, mas multiplicam-se em centenas de conversas abstractas através de pequenos aparelhómetros que os colocam , aparentemente, em contacto com outras formigas do clã. É esta a sociedade que o homem moderno criou: rotinas diárias através de trilhos que, observados com um certo distanciamento,  me levam a pensar que a passos largos nos afastamos do equilíbrio natural,  e do meio onde durante milhões de anos,  evoluímos, rumo a um futuro cada vez mais escravizante.
Poucas crianças se vêem no Metro, muitos imigrantes das mais diversas origens, uma amálgama de chineses, paquistaneses, indianos, negros e ciganos – sem qualquer ordem discriminatória – para além disso uma classe média, enfraquecida, derrotada, tristemente empobrecida e envelhecendo precocemente .
Obedecemos a sinais sonoros em curto espaço de tempo, respondemos ao estímulo do abrir e fechar portas; já não existem revisores e sim fiscais, que com ar ameaçador nos fazem frente em alturas inesperadas pedindo-nos o santo e a senha para continuar no carreiro das formigas. Tudo isto é vagamente Kafkiano, sociedade civil em mutação. Um dia acordamos prisioneiros de nós mesmos,  feras de circo destinado a meia dúzia de privilegiados. Longe vai o tempo dos cristãos atirados às feras. No presente momento cada um de nós é uma pequena fera encarcerada no corpo de uma formiga. Muitas juntas poderiam devorar o sistema!
Hoje vi um adolescente a cantar sozinho, acho que treinava para ir aos Ídolos, tal era a cantoria, em redor algumas formigas riam cochichavam entre membros da tribo. Hoje também vi alguém de olhos vazios perdidos sabe-se lá onde. Velhos exóticos, adultos fora de moda, trajes feios e sem qualquer gosto. Não existem aromas de conhecidas marcas de perfume. No Metro há uma atmosfera pesada e suja.
Gosto apenas de sair e entrar na estação do Saldanha, onde corre uma ligeira brisa através das palavras do Mestre Almada Negreiros, autor das restantes frases espalhadas nos painéis da estação  “Em mim se cruzaram finalmente  todos os lados da terra”que pode continuar a ler-se, no poema Rosa dos Ventos.  

23 setembro 2010

Outono

Tarde mansa de Outono. O  casario de paredes caiadas de branco a ferir a vista. Os murmúrios das gentes a povoar a cidade. Um risco de som na atmosfera. Calmaria imensa. A paz, a pacatez de um sítio onde a cada passo se nasce e se morre.
O céu coberto de pequenas nuvens de algodão. Tudo parece feito de equilíbrio.
Até o som do berbequim algures ecoa em mim  sons meus velhos conhecidos. Trazem-me o aroma dos pomares carregados de fruta madura, dos fios de água a passar na horta, cheiro de terra molhada, o zumbir das abelhas, a quinta do velho senhor que acumulava embalagens vazias ao monte. No velho solar havia uma janela que dava para o tanque onde nadavam carpas gigantes à mistura com enguias, também ali as gentes da aldeia lavavam alguma roupa, tendo por sombra os lilases que se esboroavam lentamente à medida que o verão avançava. Tardes mansas, tão diferentes das de agora. Hoje já não sou a criança de tranças negras que tecia sonhos imensos. Os contos de fadas tem uma época na nossa vida que nos fazem sentir que o mundo inteiro nasceu para nós; está ali inteiro,  apenas à espera que lhe estendamos a  mão para o tornar nosso. Uma brisa do tamanho do sobro de asas de borboleta invade-me, pequenos frios, pequenos medos. Como será o amanhã?
Recordo o aroma das uvas maduras,  formigas polvilhando o solo seco e arenoso. Ao longe o imenso brilho da prata convidava-me a adormecer na areia, sonhava eu com uma cidade assim, como a de hoje. Não contei foi com o golpe de asas e o desvio de rota das andorinhas. Há muito que partiram e levaram a minha alma com elas.

Aço

Sentindo o  aço frio da faca, da navalha, da adaga, escolho qual dos instrumentos quero.
Um deles será temperado de modo diferente,  cavando profundo sulco de agonia. Instante decisivo entre vida e morte. Pergunto-me porque é a vida tão frágil, que depende assim de uma lâmina pequena e afiada. Fronteira ténue entre o grito e o gesto. A  mão é uma arma, constato. ( também a palavra, dizem outros). Em tempo contado, certo mesmo, acrescento,  nasci humana, e  uma vez mais, o fino estilete me libertou da morte e para a vida! Seria possível nascer eu, apenas se me abocanhasses que nem animal ferido? Rasgar-me-ias nesse instante. Talvez mais valesse tal modo? Pergunto-me! Estrangular-me-ias?
Desde aí passei a gritar, oscilando entre o silêncio e o murmúrio das vagas alteradas; há quem lhe chame muitas coisas, mas o seu nome acaba por nunca ser um nome, nem tão pouco lhe chamo de ninguém.
Só eu continuo aqui a sentir-me dia a dia mais surda aos apelos, aos chamamentos ignóbeis dos outros que desejam lacerar sem o convencional frio do aço. Matem-me! Mas façam isso rápido, como quem corta o cordão umbilical; façam-me soltar o grito novo, que me insufle  uma alma inteira. A vida , essa já a conheço. Façam com que renasça na morte! É pedir muito?
Fino bisturi este que me modela o corpo, passeia-se docemente neste invólucro tépido.
Eras tu que ousavas, pobre louco, desfazer a minha vida em ti?
Muitos são os que em jeito de desgraça iminente, ousam sonhar com as certezas – lembra-te agora que os rios continuam a correr indiferentes à agonia da terra.
Assim eu vejo-te como um rio, estreita linha de água, aço destemperado sob a minha realidade que se escoa.
Vai, segue, desagua na linfa e faz-me espraiar numa imensidão de vermelhos rubis a mancharem a tua vã consciência.   

21 setembro 2010

Encanto

Não me deixaria eu desencantar se encanto não houvesse.
Quando deixar de acreditar no encanto, desencantar-me-ei. Este estranho movimento de vai-e-vem constante, se existe é porque assim sinto, entre cálculos menos certos que me vão preenchendo a soma dos meus dias. Cresço agora a um ritmo diferente, já não sou a pequena célula que luta para se multiplicar, faço de mim o possível para que dos teus gestos nasça um poema, único fruto deste despojo que é o amor.
És carne e anjo que alvoroça e alvorece  em frémito dentro deste profundo poço onde eclode o raio de luz nocturna.
E assim me vou encantando, à tua espera. Sempre!

20 setembro 2010

Desde ontem que já morri e renasci mil vezes. Neste dia em que me espero encontrar, perco-me sempre que me procuro. Andam meus olhos vendados, mal nasce o sol adormeço cega do brilho de tanta luz laranja.
Ontem eu não queria mais viver e pensei  que o melhor era mesmo fechar a cortina e deixar os outros continuarem sem mim. A vida é um eterno equívoco, metamorfose de embrião em crisálida, seguindo-se-lhe o nascimento da bela borboleta que vai fenecer breve.
Enquanto vou voando, olho aqui de cima, deste tapete  de pólen – não estás em lugar algum, tudo perece menos as ondas do oceano que  vão submergir o colorido veludo das minhas asas.
Como consigo eu possuir-te sem que te dês? Algures, nesta meia-fusão já não sei se sou eu, ou se és tu que existes.
Outros voos amanhã realizarei; serás um pedaço de tudo, carlinga, nuvem, açor, talvez até parte de mim que não sei se também existo.
E no céu, riscado de branco, passa um super sónico que agarro com a ponta dos dedos. Efémero como tudo o mais!

18 setembro 2010

Meu menino de oiro vieste até mim .

O meu amor por ti manter-se-à para além da vida e da morte - Imutável porque és parte de mim, enquanto um de nós existir, nenhum dos dois morrerá e por que tu vieste... em Setembro aninhar-te no meu coração.

17 setembro 2010

Palavras aradas

Este cansaço de tudo
esta vida tão sem rumo
este arado com que lavro
o pensamento soturno.
Porquê, perguntar-me-ão?
Nem eu vos sei responder
Apenas vou lavrando  terra
para a semente crescer.
Algures em alforge escondido
guardo um pouco de alento
quando chegar a primavera
deitarei por minhas  mãos
um pouco dessa ilusão
que a terra fará florescer.
E ganhar novo sentido.

06 setembro 2010

Pingo de mel

È  de manhã cedo, acordo com o alarido na rua.  Meto a cabeça de fora, pela pequena janela de guilhotina da cozinha. A porteira do prédio onde vivo, pensa que é dona da única figueira que existe no bairro, zela que nem cão feroz, receia que lhe roubem os figos pingo de mel que nascem durante o verão. Imagino que mal deve dormir de noite. Implico com esta figura de olhar sinistro, arredondada – como os figos -,  cabelos brancos, bata de cornucópias e chinela prateada no pé. Senta-se no banco do pequeno terraço e lê  revistas cor de rosa e azuis, outras manchadas de vermelho, falam por vezes da vida de outros figos.
Hoje de manhã decidiu embirrar com o homem que vende figos à entrada do centro comercial, este faz uma constante ronda pelas cercanias,  limpando as figueiras todas. Desta vez  apenas tinha colhido  meia dúzia de folhas da árvore. 
-         Para que quer você as folhas?
-         Ora! Para os figos ficarem mais apresentáveis, mais bem embalados, com estas folhinhas verdes , que lavo na casa de banho do centro comercial. As minhas freguesas gostam de olhar a mercadoria bem embalada.
-         Você anda-me mas é  a roubar os meus figos!!
-         Ó senhora!! Então não sabe que vou pela linha do caminho de ferro fora, quase até Braço de Prata, junto à linha, é daí que trago os figos madurinhos e bons.
     ( velha rabujenta)  - exclamou entre dentes, mas que eu ouvi,  e sorri interiormente, de cabeça esticada fora da janela de guilhotina da cozinha, enquanto observava a tentativa , desta vez gorada.
Passaram mais uns longos minutos e  assistindo eu ao combate pela posse dos frutos apetecíveis, era ver qual dos dois era mais manhoso. Já a dona da bata de cornucópias dizia que chamava a policia.
- Então chame! Os figos não são seus!
- Ó homem largue-me a porta!
Jurei que, só para chatear , nessa noite também eu iria aos figos!! Ao bater da meia-noite, eis me de prontidão, acompanhada pelo meu cão, fiel escudeiro e confidente das horas boas e menos boas, saquinho de plástico na mão. Deu-me um prazer enorme roubar os figos da porteira! Ainda bem que ela só lê revistas cor de rosa...

Marasmo

Já não sei de mim
Onde me perdi
Nesta réstia de saudade
Tanto enfado nas palavras
Que não saem a contento
Escorre-me negra a tinta
Da cor deste sentimento
Perdida me vou achando
No caminhar da pena
A fugir deste tormento
 Da ternura dos outros
Que observo em silêncio
Do toque que já não toco
Do grito que já não dou
De mulher bem comportada
Que não sente, que não tem
A quem roubaram a vida
E que não é de ninguém
Mais vale ficar calada!
Adormecer no marasmo
De viver esta existência
Com gritos mudos de pasmo.

02 setembro 2010

As palavras da Poesia










 



Calíope - Deusa da Poesia 

Quando aqui dentro me dói
Quando o silêncio me envolve
Num silêncio tumular
Peço baixinho ao anjo
Para a minha alma guardar.

Eis que nasce mais um dia
Num dourado alvorecer
Espaireço esta tristeza
Saudade que tenho tua
De nunca te poder ter.

Restam-me as palavras
Com que te estou a escrever
Faço delas a poesia
Com receio de algum dia
Poeta não vir a  ser.