12 abril 2010

Sr. Hulot à portuguesa

Augusto José Rainho, funcionário aposentado do Banco de Portugal, era homem de grande porte, o seu metro e quase noventa, olhos de peixe e nariz aquilino e barriga proeminente aconchegada por suspensórios que esticava como se fosse uma fisga, fazia-me lembrar vagamente Jacques Tati no papel de sr. Hulot. Sempre pontual, exigente consigo próprio , mas muito mais com os outros. Aqui entre nós, diga-se que era sensível ao sexo feminino, um belo par de pernas não lhe passava despercebido e havia até quem se perfumasse e colocasse batom bem vermelhusco, quando ia a despacho.
Todos os anos em Agosto, rumava à estância balnear mais conhecida pelo “bidé da senhora marquesa”, não sem antes de, fazer a vida negra a meia dúzia de subordinados na Junta de Freguesia para onde tinha sido eleito pelo partido.
Em tempos idos, os do Estado Novo, tinha sido alto graduado da MP, e continuava a nutrir uma secreta admiração pela instituição, coleccionando secretamente tudo quanto dissesse respeito à mesma.
Reuniam-se ele e mais colegas , ao fim da tarde, e relembravam os bons velhos tempos; no dia seguinte procurava aplicar alguns dos princípios que lhe tinham ficado em agenda da memória.
Os funcionários perfilados, quase que lhe faziam a continência, mas por detrás, abandonavam-se em risos ou em queixumes conforme a ordem do dia.
Sentado na sua secretária, pejada de papéis, preenchidos com letra miudinha, deleitava-se horas a fio redigindo tudo o que fosse passível de ser redigido, desde relatórios a noticias para o Boletim da Junta, passando pelos Ofícios e todo o expediente geral . Gostava de exercer o seu poder, levando com isso a alguns ódios.
Nos dias de verão aplacava a sede com refresco de capilé que a D. Maria de Lurdes de belos olhos azuis fazia questão de lhe levar. Agradecia grosseiramente. E, ela quase que o venerava, tinha-lhe quase um medo ancestral – diria!
Seguidamente, entrava no gabinete Maria da Purificação Martins, figura pequenina, roliça e matreira - minutos antes besuntara-se de batom a contento, passara um pente pelo cabelo cortado “à la minute” ; ia a despacho, bamboleante e presunçosa. Era ela que se ocupava da contabilidade da Junta e fazia o IRS ao sr. Augusto Raínho; não só mas também alguns outros serviços; mais do que aqueles que muito gente pensava à época.
O sr Raínho era sovina e, se fosse preciso poupar em agrafos, clips ou folhas de papel A4, podia sempre contar com a colaboração da Maria da Purificação que, contabilizava as entradas e saídas dos agrafos e demais material de escritório,
Por vingança, certo dia, alguém colocou cola na tábua do w.c,, deixando o sr Raínho possesso e de traseiro mal-tratado; apenas um exemplo das maldades que o pessoal menor, sempre que podia e que tinha oportunidade se dedicava a executar, talvez um pouco para aliviar o ambiente soturno que a Junta de Freguesia tinha em horário laboral. Não mencionando a célebre caixa de fósforos que continha um séquito de pulgas não amestradas, e que foi largada na periferia do seu assento quotidiano! Muito se deve ter coçado nesse dia, a ponto de, finalmente aceder a que uma esquipa de desratização viesse exterminar os ratos que pululavam nas instalações.
O sr. Raínho tinha imenso orgulho nas suas duas filhas, e aquando do divórcio e do escândalo de lavagens de dinheiro que vieram a público de um seu genro, experimentou um estado de desanimo que o levaram a um declínio físico, meses mais tarde esse abatimento prostrou-o. Obrigou-o o médico a que ficasse em casa , de baixa médica – algo que ele nunca tinha concedido aos seus funcionários.
Poucas vezes o vi depois disso, de quando em vez pergunto aos amigos em comum por ele, dizem-me, já pouco sai à rua, que por lá está, sentado no sofá, já sem a sua enorme barriga, agora magro e seco, fazendo do seu corpo um cabide para os fatos que lhe bailam no corpo. De facto a velhice, começa também por ser um estado de alma que se instala lentamente, sem nós darmos por isso. E na vida tudo passa por nós e nós pela vida, há pessoas que deixam saudades, outras nem por isso. Confesso que pela minha parte, saudades minhas leva-as o vento.

1 comentário:

Petrarca disse...

O senhor Rainho!
Afinal o homem era Rei na Junta de freguesia, aquilo era uma monarquia...
(Direi que algumas delas o são, mas isso são histórias de outro rosário, agora o que interessa é o senhor Rainho).
Rei, dizia eu, e com a sorte de ter uma aia como a D. Maria da Purificação que lhe "tratava da contabilidade..."
Pensando bem, não deve ser mau de todo ser presidente/rei de certas juntas...
:-)