A solidão das mulheres divorciadas
«Aos fins-de-semana quando não saio com a minha prima Bé fico em casa a ver televisão. Ver televisão quer dizer regar as plantas da marquise, ler o horóscopo nas revistas, desfazer o tricô do domingo anterior, mudar de canal de 20 em 20 segundos e pensar em matar-me.
O problema é que assim que me levanto para tomar os lexotans todos de uma vez a minha mãe telefona de Alcobaça a saber como estou, ouço-lhe os gritos no atendedor de chamadas (a minha mãe que tem um medo danado dos telefones sempre falou aos gritos) e como não é possível a gente suicidar-se e conversar com a mão ao mesmo tempo, desisto das pastilhas e garanto-lhe que estou óptima, não tenho febre, fumo no máximo três cigarros por dia, como bem, não emagreci(- de certeza que não emagreceste?)para a semana visito-a em Alcobaça sem falta e qualquer dia, palavra, encontro um rapaz como deve ser(- Não acredito que não haja um rapaz como deve ser no teu emprego filha)torno-me a casar, desligo o telefone com um tal cansaço e uma tal dor de cabeça que a única coisa que tenho vontade é de uma aspegic e silêncio, deixei de ter ganas de me suicidar visto que uma pessoa não consegue matar-se se estiver mal-disposta.
Nos fins-de-semana em que saio com a minha prima Bé vamos à Loja das Meias e à Escada sonhar com blazers de caxemira(- Pode ser que com o subsídio de Natal lá chegue)e casacos compridos, chateamo-nos como peruas nos filmes que os jornais gostam, encontramo-nos num bar com colegas da escola dela que descobriram na semana passada um restaurante em Alcântara e já me sucedeu acordar aos domingos de manhã num apartamento de Campo de Ourique ou do Beato ao lado de professores de Matemática com iogurtes fora do prazo no congelador, um chinelo esquecido no bidé e um cinzeiro de folha a transbordar beatas no soalho, junto de uma chávena de café quebrada.
Incapaz de tomar banho num chuveiro em que faltam o sabonete e a água para além de se achar ocupado por um montão de jornais velhos, volto a toque de caixa para o Lumiar sem me despedir do barbudo que ressona de queixo na almofada(- Não acredito que a Bé não conheça um rapaz como deve ser)com um ombro fora do pijama descosido e adormeço até que os gritos de Alcobaça me acordam, de coração aos pulos, para inquirirem no atendedor de chamadas se não tenho abusado dos fritos.
Não abuso dos fritos, não abuso do tabaco, não abuso do álcool, não abuso do sexo, não abuso de nada mãe: oiço crescer o pêlo da alcatifa, mudo de 20 em 20 segundos a televisão de canal e leio o meu horóscopo na penúltima página dos magazines femininos a seguir ao caderno da moda e a um artigo que explica como um cinto de ligas e uns sapatos vermelhos poderiam mudar a minha vida afectiva. Com um cinto de ligas os iogurtes fora do prazo desapareceriam do congelador? Com sapatos vermelhos encontraria chuveiros sem jornais? O meu horóscopo para esta semana, dividido como sempre em três partes, saúde (cuidado com o fígado!), finanças (atenção às despesas excessivas!) e amor, prevê para quarta feira, e no que respeita a paixões, um encontro inesperado que me alterará para sempre a existência. Quarta feira foi ontém e o encontro inesperado que tive consistiu em esbarrar com o meu ex-marido no metropolitano: deixou crescer o bigode, vinha acompanhado por uma mulata com metade da idade dele e nem sequer me viu. Ter-me-á visto alguma vez?
Em todos os canais de televisão passam novelas brasileiras. Oiço a chuva de Outubro contra os vidros e o casal do andar de cima a gemer ao ritmo da cama. Se me levantar para tomar os lexotans todos a minha mãe vai desatar aos gritos no atendedor de chamadas, de maneira que o melhor é ficar quietinha no sofá a olhar as plantas e o retrato do meu sobrinho bebé sem pensar no suicídio. Para quê?
Durante seis meses poupo nos almoços (uma bica, um croissant e um pastel de bacalhau) comidos em pé ali no centro, compro o blazer da Escada e uns sapatos vermelhos, a colega que vende ouro no escritório prometeu baixar-me as prestações do anel e passo o serão sozinha, de blazer, sapatos e cachucho, lindíssima, a mudar de canal e a ouvir o pêlo da alcatifa crescer.»
-- António Lobo Antunes, Livro de Crónicas, edições Dom Quixote (1995)
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