21 fevereiro 2010

Morrer lentamente

A porta fechou-se de mansinho atrás de si. Desceu vagarosa o lancil de pedra mármore, que emoldurava a porta de entrada da casa.
Percorreu os locais preferidos da cidade; há muito que tinha perdido as suas crenças, era como um invólucro vazio, um corpo sem rumo, perdida a esperança.
Mesmo fazendo tudo ao contrário, para não morrer lentamente, existia apenas uma linha de sentido obrigatório em direcção ao fim da vida..
Veria chegar o fim e descobria que há tempo relativo, medido pela nossa cabeça que pode ser rápido ou lento, e um tempo absoluto (medido pelos relógios) que é inexorável e nos mostra os tempos que perdemos quando fazemos as contas.
Foi tudo isso e muito mais que lhe passou pela mente, enquanto, sentada na paragem de autocarro, olhava, sem olhar, o vai e vem apressado da cidade que corria sabe-se lá para onde.
No alto da cidade, existia um miradouro que ela recordava agora; ali o tempo tinha sido rápido, não tinha parado como ela desejara, nem mesmo dentro da pequena igreja, onde interiormente uma prece tímida tinha brotado, esse tempo tinha partido à desfilada, levando consigo um outro tempo que nunca mais voltaria, mas ela não o sabia ainda.
Ocorria-lhe uma frase de Pablo Neruda :
“Morre lentamente quem evita uma paixão, quem prefere o negro sobre o branco e os pontos sobre os “is” em detrimento de um remoinho de emoções justamente as que resgatam o brilho dos olhos, sorrisos dos bocejos, corações aos tropeções e sentimentos.”
Também ela não tinha sabido evitar essa paixão, e morria na mesma , lentamente, sem brilho nos olhos, sem sorrisos e tropeções só os do pequeno coração que batia dentro de si. Um coração que pararia em breve.
Chovia no corpo enregelado, dois corações a bater num só compasso.
O amanhã não existiria para nenhum deles. O ontem tinha sido construído sobre a clandestinidade, oculta na noite, entradas e saídas na escuridão de uma qualquer curva de estrada mais sombria.
Caminhou devagar até um pequeno jardim, onde podia avistar a memória do que já não mais seria presente. Ainda conseguiu sorrir, lembrando beijos que lhe tinham sido roubados.
Abandonou-se por ali, num pequeno banco de madeira, ensopado de chuva e de tantas outras confidências feitas ao longo do tempo.
A manhã não conseguiu chegar até ela. Quando o sol nasceu já era tarde para os dois corações que pararam na madrugada gelada.
Tal como um relógio sem corda.

3 comentários:

Petrarca disse...

Para já um bonito texto, que transmite muita emoção.
Eu não sei se as paixões matam. Palpita-me que não. Fazem sofrer, muitas vezes, mas também nos fazem crescer.
Por mim, vou mais pelo crescimento que pelo sofrimento.
Mas quem sou eu?

semsombra, o homem disse...

Encontrar e procurar...deixe-se encontrar.

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Uma certa quantidade

Uma certa quantidade de gente à procura
de gente à procura duma certa quantidade

Soma:
uma paisagem extremamente à procura
o problema da luz (adrede ligado ao problema da vergonha)
e o problema do quarto-atelier-avião

Entretanto
e justamente quando
já não eram precisos
apareceram os poetas à procura
e a querer multiplicar tudo por dez
má raça que eles têm
ou muito inteligentes ou muito estúpidos
pois uma e outra coisa eles são
Jesus Aristóteles Platão
abrem o mapa:
dói aqui
dói acolá

E resulta que também estes andavam à procura
duma certa quantidade de gente
que saía à procura mas por outras bandas
bandas que por seu turno também procuravam imenso
um jeito certo de andar à procura deles
visto todos buscarem quem andasse
incautamente por ali a procurar

Que susto se de repente alguém a sério encontrasse que certo
se esse alguém fosse um adolescente
como se é uma nuvem um atelier um astro

(Mário Cesariny)

sem sombra, ohomem disse...

A noite é ainda uma adolescente e os comentários já libertaram os seus frutos?


belas pêras
firmes são
rio de sensações
correntes
pedras
paixão
quente
frio