22 março 2010

O rio da minha terra.

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.
Alberto Caeiro

O rio corre manso à minha beira enquanto vou percorrendo com o olhar a tela pintada em tons de azul, por mestre desconhecido. Uma imensa baía emoldurada por margens que parecem fechar-se sobre si próprias e me enlaçam. Na linha do horizonte, mesmo em frente, a Arrábida coberta com véu de bruma, serena e majestosa, como uma ilusão de óptica faz repousar uma extensa linha branca de casario no sopé.
Nuvens acasteladas, brancas, densas, mescladas de azul e cinza tocam as brancas velas dos barcos que, ocasionalmente solitários, parecem tombados por uma brisa persistente que os inclina, obrigando a adormecer no leito azul do rio, beijado aqui e além pelo voo picado das aves, pescadoras clandestinas, sem licença alguma para o fazer.
Chegam-me em surdina, o barulho da urbe, apitos estridentes, buzinas, travões de carros, ambulâncias, vozes humanas, uma mistura implacável que quebra o ritmo da natureza, mas mesmo assim, sobrepõem-se o doce marulhar das águas que chapeiam monocórdicas a velha pedra calcária das margens, em incontáveis movimentos – uma agradável sensação de calmaria e de paz, uma espécie de bater de coração que nos parece embalar.
Pescadores de beira - rio, pares de namorados, juntos, quietos, apenas presos pelo olhar, pontilham a margem , perdida no imenso azul aquífero , percorrido por inconfessáveis arrepios que lhe alteram a aparência de veludo azul cristal.
Mais ao longe- não muito - numa constante ronceira o cais de ferro, pesadão e negro, geme ferozmente, engolindo os milhares de passageiros que num vai e vem frenético, em ritmo alucinante os traga dia após dia, uns regressam, outros não, algo ainda mais negro os tragou- diria, que foi a vida, talvez a morte, não sei; certo é, que estou ainda aqui ao pé do rio da minha terra, onde um dia nasci e, onde um dia também eu morrerei , quem sabe se a olhar-te assim, e assim eu me vou ficando todos os dias um pouco mais de terra, um pouco menos de água. “E eu só ao pé dele”.

1 comentário:

Petrarca disse...

"Quem está ao pé dele,
está só ao pé dele".
Também tenho um rio desses lá para as minhas bandas, que visito com alguma frequência. É o meu sado, nunca o tejo. Já lhe fiz uma referência lá no meu "sítio" e servi-me do mesmo poema.
Como em tudo na vida, há rios que têm grandes navios e outros que têm navios e golfinhos.
O rio da minha terra só tem saudades do tempo em que ainda era rio...