24 março 2010

Rodicka Simeonescu

Aquando da imposição, pela União Soviética de um governo comunista o rei Miguel I foi forçado a abdicar e a exilar-se . Nicolae Ceauşescu tornou-se o chefe do Partido Comunista Romeno em 1965, originando a fuga de milhares de romenos dissidentes para diversas partes do mundo.
Em dois protocolos secretos, os dois governos, o nazi e comunista, efectuaram a partilha dos territórios da Europa de Leste, estabelecendo estreitas relações comerciais da maior importância para os países envolvidos.
È com este cenário por pano de fundo que Rodicka Simeonescu e o seu marido diplomata fogem para Portugal.
Rodicka Simeonescu, era senhora de grande estado e condição; quando a conheci fiquei extasiada: - olhos pretos-pretos-azeitona, enormes a fazerem lembrar duas pedras de ónix, sombreados a verde esmeralda, encimados por uma estreita linha de sobrancelha, olhar de ave de rapina- das maiores claro, daquelas com uma envergadura de asa que nos deixa a nós humanos encolhidos e a olhar de lado! Testa alta encimada por um cabelo negro asa de corvo, enormes brincos bojudos, a lançarem chispas com tanta pedraria engastada. De resto trajava com alguma elegância, clássica no vestir ao contrário dos seus gestos exuberantes, gesticulando sempre.
Fazia lembrar uma velha cigana, quase que me imaginava a estender-lhe a mão para que me lesse a sina.
- Como estás tuuuuuuuuu minha querridaaaaa amigaaaaa?
Acompanhava esta interrogação com um abrir de braços, como se viesse dar-me um abraço. E dava mesmo!
- E o nosso querridooo meninuuuu? Como estás ele?
Sempre gentil a perguntar pelo meu filho, que tinha conhecido num passeio a Reguengos de Monsaráz e que adormecera tranquilo no colo dela.
Para todos o que se cruzavam com ela, tinha sempre esta forma de falar, um português adocicado e carregados nos erres.
Dizia-se à boca calada que tinha sido amante de um Ministro no tempo do Estado Novo, quando desembarcou em Portugal, apaixonou-se e logo ele lhe montou um apartamento ali para os lados do Bairro Azul.
Mais tarde tratou de lhe conseguir um canudo que dava direito a leccionar em colégios particulares.
Sucede que faleceu o Ministro e o marido também.
Azar dos azares, nunca fez descontos para a Segurança Social, sempre com os chamados recibos verdes chegou a uma situação de quase miséria e muita penúria.
Vivia rodeada dos seus felinos e objectos de estimação, muitos deles peças de arte, provas de afecto do tal ministro que sempre a amparou.
Certo dia, ao fim da tarde, conseguiu convencer-me e leu-me a buena dicha, estendi a mão para ler minha sorte. Honestamente devo reconhecer que leu bem, disse-me coisas tão verídicas e sérias que retirei a mão assustada. Ela sorria misteriosa, entrando pelo meu olhar adentro, perscrutando-me a alma acrescentou o seguinte :
- Minha querridaaaa...
Quando o amor te acenar, segue-o ainda que por caminhos
ásperos e íngremes.
E quando suas asas te envolverem, rende-te a ele.
Ainda que a lâmina escondida sob suas asas possa feri-te.
E quando ele te falar , acredita no que ele diz,
Ainda que sua voz possa destroçar os teus sonhos,
Assim como o vento norte devasta o jardim
Pois, se o amor coroa, ele também te crucifica.
Se te ajuda a crescer, também te diminui.
Se te faz subir às alturas e acaricia seus ramos
mais tenros que tremem ao sol, também te
faz descer às raízes e abala a tua ligação com a terra.
Como os feixes de trigo, ele mantém-te íntegra.
Debulha-o até deixá-lo nu.
Transforma-o, livrando-o de sua palha.
Tritura-o, até torná-lo branco.
Amassa-o, até deixá-lo macio e, então, submeta-o ao fogo
para que se transforme em pão, no banquete sagrado de Deus.
Todas essas coisas pode o amor fazer para que tu
conheças os segredos de seu coração e, com esse
conhecimento, te tornes um fragmento do coração da VIDA.

Só mais tarde, muito mais tarde mesmo, soube que estes versos pertenciam a Khalil Gibran, fiquei intrigada quando, certa tarde recebi uma estranha missiva sua, a pedir-me que um dia lhe levasse camélias brancas...
Vim de lá agora, deixei-lhe o ramo de camélias tal como era seu ultimo desejo; poucas pessoas estavam para a despedida, conheci a filha e o neto já tardiamente – pena é que só depois da morte e perante esta, as pessoas se reunam, esquecendo que é no mundo dos vivos que devemos amar os outros como gostaríamos que nos amassem a nós.
Deixou-me ali um amuleto, um estranho peixe de metal, por via dos maus-olhados, conservo-o pendurado na parede. Acabei de olhar para lá e sorri.

1 comentário:

Petrarca disse...

É isso!
Um peixe pendurado como amuleto, nunca fez mal a ninguém e acaba sempre por sugerir um sorriso.
Belo post e belo remate!