25 maio 2010

O Sonho

Algures numa vila perdida num país da velha Europa decorre a inauguração de uma capela tendo como padroeiro o mais recente santo, canonizado pela Santa Madre Igreja.
Foram meses de azáfama para preparar o espaço que em épocas remotas, entre outras utilizações, foi estúdio de revelação fotográfica, com as paredes impregnadas de substâncias tóxicas, que causaram a morte a vários empregados da família Abranches .Mortes misteriosas das quais nunca se conseguiu averiguar as causas,
Destinado que foi o espaço para fazer nascer a capela já em pleno séc.XXI, diziam os entendidos que só desta forma se poderiam apaziguar as forças do maligno que por toda a quinta se tinham espalhado.
Na vila, juntavam-se diariamente centenas de pessoas, confluíam dos mais variados pontos, para comercializar estranhos objectos servindo de móbil para o tráfico de passaportes e diamantes, já para não falar do tráfico de influências que se faziam dentro dos portões da quinta. A confusão era geral, mas havia sempre quem se orientasse em proveito próprio.
Após meses de carpintaria, pintura e retoques, foi chamado o Bispo para abençoar o espaço, congregando no pátio fronteiriço os fiéis que entoavam loas à Virgem; estes rezavam baixinho o Pai-Nosso, ao quatro pontos cardeais voltando-se sistematicamente, não para Meca, mas para trás e para os lados, para ver as modas, observar quem estava e subjacente a tudo isto um bixanar constante, quase que impedindo de ouvir o que o Bispo e seus acólitos diziam; o ar impregnado de Tabú e Chanel 5, as senhora nos mais ricos trajes domingueiros, não significando que fossem sempre de bom gosto, olhares finamente acutilantes para as vizinhas mais próximas(faziam lembrar o olhar de uma raposa), observando entre si quem era a mais bela do rebanho. Os cavalheiros cochichavam com voz baixa de matraca as últimas mudanças no regime que tardava em cair a muitos quilómetros dali.
No momento da benzedura, agitavam-se inquietos , como se incomodados com borrifos de água que se adivinhava fervente. O mal pairava no ar, a atmosfera estava pesada. Não obstante, a cerimónia continuou, algumas vezes interrompida pelo porteiro da quinta que se via aflito , em palpos de aranha para coordenar as viaturas que se queriam já estacionadas no interior da quinta e que tinham chegado fora de horas. Já não havia mais lugares, nem para uma carroça sequer, os burros já tinham entrado, acomodados nas cavalariças com a ração certa de palha, ruminavam na calmaria das grossas paredes de granito.
Depois da inauguração do oratório, seguiu-se o repasto, não gastronómico, mas um repasto de palavras que a todos foi servido; era um gáudio vê-los beber cada frase até à última letra, sempre de sorriso nos lábios, nunca perdendo a compostura, aguentaram firmes até ao fim da cerimónia. Se bem que eu conseguia vislumbrar alguns esgares de enjoo e quase vómito, derivados a tanta abundância de literacia que estava a ser servida. O discurso era fértil em adjectivos e também lugares comuns que acabavam em redundâncias.
A tarde chegou ao fim , deu lugar à noite e cada um, sentindo a seu modo, seguiu o seu caminho inchados de bem-estar e bençãos do santo padroeiro.
No dia seguinte, no pátio principal, a capela permanecia de portas abertas, com o santo padroeiro assistindo a uma estranha procissão , algures um alarido, que redundava em quase discussão. As gentes vizinhas ao saberem do oratório vieram visitar a quinta e deparavam-se com um insólito cenário: o ensaio de uma companhia de teatro africana que tinha sido construído com palmeiras e coqueiros em acrílico ocultavam a estátua do senhor de Abranches, ( antigo proprietário da quinta), que teimava em espreitar por de trás de uma longa folha verde e recortada! O batuque fazia-se ouvir, mas mais alto do que batuque, o sons nada distantes dos vendilhões de passaportes e diamantes ecoavam dentro do pátio principal; na minha memória ecoavam ainda os cânticos das Avé_Marias da véspera! Sentia-me tão confusa que já nem sabia de que terra era!!
Para meu espanto eis que surgiu de rompante um mercedes prateado, de alta cilindrada, conduzido por motorista, que avançou decidido , largando uma alta patente militar, neste caso um general de 5 estrelas, mesmo em frente ao oratório; e o senhor de Abranches querendo espreitar teimosamente entre o verde acrílico das palmeiras.
O batuque acelerou!! O general saiu do carro, espantado, não sabendo já muito bem se estava em África a entrar na sanzala do Gugunhana, a guerra parecia estar iminente, um calor sufocante fazia destilar os corpos. Acordei quase que sufocada, não sabendo muito bem distinguir a realidade da ficção. Fui espreitar o pátio.... e não é que as palmeira se o tambores estão espalhados pelo chão??! Do santo padroeiro não vi vestígios, acho que foi roubado durante a noite por uma qualquer seita praticante de magia negra.

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