06 maio 2008
Colo de garça (IV)
Sentia-me perdida. Sabia que era inevitável o momento seguinte - como uma espécie de fascínio maldito - no tempo que tinha parado , ele avançava para mim, como um felino que ataca a presa.
Os olhos brilhavam raiados de sangue, completamente cego e preso de um furor indescritível.
Sentia todo o meu corpo a retesar-se ,e as mãos a ficaram húmidas.
Encarei-o de frente, resignada. Abateu-se sobre mim, descarregando toda a ira e raiva.
A mão caía dura na minha pele, ardendo. (ainda consigo aguentar mais, afinal a dor é isto?), atrás de mim apenas e só a parede o último reduto, mas o olhar fugia para a porta da entrada , (se eu conseguisse lá chegar). Ao soco e ao pontapé deixei-me aprisionar ainda mais, agora já enrolada sobre mim mesma, apenas tentando proteger a cabeça. Mil pensamentos me passsavam em segundos: os meus filhos, a minha vida queimada, os anos desperdiçados, a juventude perdida, a segurança paterna.
Arrastando-me devagarinho - a próxima meta era a porta da casa de banho, lá estava o armário dos medicamentos - lá poderia acabar comigo e com o sofrimento.
Ardia-me o corpo todo, imenso e ensanguentado, partida, amarfanhada, humilhada. Num ímpeto , em desespero final, consegui erguer todo o peso morto de um corpo sem alma e vazio. Esgueirei-me de supetão para a casa de banho, fechei a porta à chave. Do outro lado as pancadas soavam fortes estremecendo as paredes.
Olhei-me no espelho, olhos vermelhos, rosto pisado escorrendo sulcos negros com marcas profundas no pescoço, (quem era eu afinal? Que fazia ali? Porque ficava dia após dia , deixando-me morrer assim?).
Do outro lado da porta a voz grazinava, martelada , violenta, acusatória, (tinha de saber esperar, ainda não era chegado o tempo da fuga).
E se fugisse agora? Maldito cárcere, carcereiro intemporal, voavas do tempo passado até ao presente (não tinha bastado a vez em que me degolaste? – tinhas de voltar para me fazer reviver o tempo em que me separaste dos meus filhos).
Quantas mais vezes vou ter que renascer e sofrer no corpo e na alma a tortura e a violência?
Olhei com desespero as pequenas pérolas brancas que tinha na mão, de um só gesto engoli rápido , sabendo que iria partir.
Hoje olho para baixo, e vejo o meu corpo jazendo envolto no frio da pedra de lioz, espécie de relicário, figurinhas em rosácea – Tanagras que a Dor revolve e sagra, degolada do mundo, alma vagueando de corpo em corpo, eternamente feminina, sempre …”Até ao fim do mundo”.
Pelo menos 17 mulheres morreram este ano devido a violência doméstica e 11 sobreviveram a tentativas de homicídio neste contexto. Os dados foram avançados pela União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), que realça que são apenas resultados preliminares, contudo, mostram um aumento dos homicídios no contexto de violência doméstica, em relação ao ano anterior.
Maria José Magalhães, da direcção da UMAR, adiantou que duas destas mulheres foram mortas pelos filhos e uma das sobreviventes encontra-se ainda hospitalizada em estado grave. A responsável adianta que só este fim-de-semana morreram duas mulheres às mãos de maridos, ex-maridos, companheiros ou filhos.
Segundo os dados da UMAR, referentes aos primeiros 3 meses de 2008, a maioria das vítimas tem entre 55 e 65 anos e moram na região centro, embora haja muitas da zona norte. Destaque ainda para o facto de 30 por cento das mulheres assassinadas serem consideravelmente mais jovens, tinham entre 20 e 30 anos. As estatísticas mostram também que as vítimas pertencem a todas as classes sociais e de todas as habilitações literárias.
Os dados referem-se apenas aos casos divulgados pela comunicação social , já que, segundo a UMAR, as estatísticas oficiais demoram muito tempo a serem divulgadas, por vezes meses. Assim, é possível que o número de vítimas ainda seja superior.
«Mais príncipes do que o príncipe encantado»
As responsáveis da UMAR explicam que «é difícil para as mulheres saírem do ciclo de vitimização. Muitas temem pelas suas vidas e têm razão. Fugir é difícil e há sempre a hipótese de correr mal, além disso, pensam no futuro dos filhos, e muitas não têm condições de os sustentar».
Maria José Magalhães explica ainda que, «depois de um episódio de violência, os homens pedem desculpa e durante algum tempo são mais príncipes do que o príncipe encantado. A mulher perdoa, até porque está apaixonada, e começa mesmo a desvalorizar, mas da próxima vez é um bocadinho pior».
«O problema», adianta a responsável, «é que o homem julga-se dono de uma mulher só porque gosta dela, namora com ela, ou quer namorar. Aquilo que começa muitas vezes como um controlo do telemóvel, da roupa, e das pessoas com que a namorada fala ou está, torna-se mais tarde em violência». A situação acaba por chegar ao limite em que o agressor diz: «Se não és minha, não és de ninguém», explica.
«A mulher não pode sair deste ciclo sozinha»
Maria José Magalhães explica que «a mulher não pode sair deste ciclo sozinha» e realça a importância dos centros de atendimento terem uma resposta técnica qualificada. «O centro do Porto funciona desde Janeiro de 2007 apenas com voluntárias», realça Ilda Afonso, também da direcção da UMAR. O centro, que faz atendimento de emergência, funciona 24 horas por dia, todos os dias, «mas é muito difícil conseguir isto apenas com voluntários», garante.
A UMAR apela assim à «população em geral, à Segurança Social e ao Estado» para que ajudem a dotar estes centros dos meios humanos e infraestruturas necessárias ao atendimento das mulheres e das suas famílias.
A organização diz ainda que é preciso uma mudança de mentalidades. Para isso, implementou um programa, aplicado em escolas e bairros, para mostrar aos jovens que os problemas não se resolvem apenas com recurso à violência e para ensinar às jovens como detectar os primeiros sinais de violência.
Entre 12 e 18 de Maio, decorre na Faculdade de Psicologia do Porto o Ciclo de Cinema Feminista. Além de pretender alertar a população para os problemas das mulheres, servirá ainda para angariar fundos para os centros da UMAR
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