Metropolitano de Lisboa, Linha Verde– 13:30, carruagem cheia (aliás quase sempre).
Sentado à minha frente, um ser estranhamente andrógino chama-me a atenção, e miro-o descarada, enquanto deito um olho meio torto, para o parceiro do lado que desenha rostos em folha A4, este no entanto não me consegue surpreender; é comum ver gente nos transportes públicos a esboçar caricaturas ou simples rabiscos; a única diferença entre nós , é que eu guardo os meus esboços na memória, enquanto o viajante que comigo partilhava o banco passava-os para o papel.
Voltando ao ser andrógino em pose correctíssima, recordo-me de, como era apanágio de boa educação e bom tom, durante o Estado Novo, as senhoras sentarem-se com as pernas levemente inclinadas para o lado, joelhos e pés unidos e costas bem direitas;nada como as liberdades actuais que permitem pés nos bancos e pernas abertas como se de uma aula de ginástica se tratasse. Adiante! Para o caso não interessa porque nessa altura eu era uma criança de colo e ainda gatinhava.
Ora o cavalheiro em questão, que de cavalheiro nada tinha, possuía um belo cabelo negro, com algumas (poucas) madeixas douradas, e tinha assim um corte tipo “tijela” mas caindo sobre os ombros ( largos) que rapidamente culminavam num corpo de adolescente. Não aparentava mais de 17 anos e via como o Camões, ou seja, só de um olho, porque o outro estava tapado pela bela franja que lhe descia até ao nariz e em jeito godés, enquadrava-lhe ou, desenquadrava o rosto. E a pobre criatura espreitava assim, quase tímida , ocasionalmente ajeitando a franja com uma mão branca, de unhas imaculadas e que terminavam como se escamas de peixe tivessem ali sido coladas, escamas de peixe mas dos grandes, garoupa ou cherne! Peixes de alto mar.
O pulso adornado por uma pulseira com pequenos dados de jogar, em tons de branco e vermelho, - também aí ele tocava pontualmente e fazia rodar os dados dois a dois – uma espécie de tique, enquanto eu observava no dedo anelar o brilho de um caxucho em forma de coração, todo ele multi-facetado de cor vermelha. Lindo!
Olhei-o como já referi, sem qualquer tipo de pudor, intrigada , pensando que coisa era aquela, que até tinha um rosto bonito, uns lábios bem delineados, perfeitos , lábios esses que qualquer mulher gostaria de possuir ou – neste caso – de ter.
E o petiz-rapaz-meia-coisa estranha, espreitava com ar assustado , como se tivesse aterrado numa carruagem de Et’s. Entrei em processo de dúvida, autêntica revolução na minha massa cinzenta – afinal quem estava ali deslocado? Eu ou ele?
Felizmente não tive muito tempo para estas cogitações, porque fui chamada à realidade pelo apito estridente de abertura de portas na estação do Rossio.
Saí para a gare , e a nave prosseguiu o seu caminho, - perdão o Metropolitano – Lá foi o ser andrógino pelo buraco adentro.
5 comentários:
Essa ou outra figura andrógina, mas com os mesmos tiques, já a tenho econtrado também na linha azul. O que prova que a cor pouco interessa. Também gosto de "apreciar" essas figuras. No fundo o que há ali é um mau funcionamento de glandulas e hormonas e acabo sempre por não saber o que pensar. É fácil para uma pessoa dita "normal" analisar e dar palpites sobre o que faria ou não faria, se o caso fosse com ela própria. No fundo há muitas maneiras de se ser feliz. Quem tiver de se apear que se apeie, quem quiser que continue pelo buraco adentro.
Sabe-se lá o que pensará de mim "
o" ou "a" que daqui a pouco se sentará à minha frente numa linha de qualquer cor...
Ainda bem que as unhas parecem escamas de peixes graúdos e não de peixes miudos. Pelo menos não estou metido nisso... :-)
Não está de facto, metido nisto !Gosto de imaginar que faria eu se um "Trachurus trachurus" de repente me oferecesse flores numa qualquer linha verde ou azul às riscas, para além de que, não creio ser o seu caso, um mau funcionamento de glandulas e hormonas, mas isso só comprovando em carruagem de Metro de uma qualquer cor, azul , verde ou amarela.
Esta cidade encerra verdadeiros tesouros.
Todos os dias cruzamo-nos com desconhecidos que por detrás da fachada cinzenta e de olhar fugidio possuem um imenso universo colorido que nos
aguarela a vida ( estas duas palavras "saltaram" fora do con-texto.
aguarelam !!!!
E se em vez de um Trachurus trachurus, fosse um Gadus morhua a apresentar-se à Gomes Sá ou à Zé do Pipo? Já um Epinephelus niveatus seria mais difícil, pois, cumprindo as ordens do Poeta, tráz sempre uma chusma de seguidores...
Nunca ninguém sabe "a priori" como reage perante certas aparições.
Eu se visse á minha frente uma Sylvia Aticapilla a pililar, que faria? Às vezes já com uma Passaridea fico atrapalhado. Se calhar abria a boca de espanto e perdia a linha, fosse ela a verde, a amarela ou a azul.
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