31 maio 2011

Sobre a dor

Às vezes dói-me. E dói-me muitas vezes. Uma dor fina no peito, do lado esquerdo. No meu lado esquerdo, embora me digam que o coração não dói!
Mas a mim dói-me o coração. Dói quando leio as noticias dos jornais , quando oiço os noticiários televisivos, quando vejo documentários , quando sou apanhada desprevenida, mesmo que seja o chamado “serviço público de televisão” – que ainda não compreendi muito bem que serviço público é este - com documentários a justificar a existência dos touros ou, em outro patamar, dói-me ao ler a noticia do jovem de 18 anos que perdeu pai e  mãe, esta  por causa de um  cancro ladrão,  e que, não satisfeitos os alegados desígnios do destino, levam o rapaz a passar fome; sem família, sem casa, sem protecção ,  a mendigar um  comida junto de uma esquadra de policia.
Dói-me quando vejo  imagens sobre comportamentos violentos,  crueldade, a ausência de  valores   entre os adolescentes ( muitos deles oriundos de famílias desfeitas) a par com um estado quase acéfalo .
Dói-me a falta de ideais, a política calculista, a pobreza de espirito, a ausência de elevação de ideias. E caminhamos assim cegos para o abismo.
Dói-me tanta coisa, que temo , um dia destes ficar insensível à dor, porque não quero que me doa mais.
A juntar a isto, há a minha dor pessoal, sentir que as pessoas que amo , também elas  carregam as suas dores e eu, sem lhes poder valer.
Chego a pensar que tanta dor junta é masoquismo. Dou por mim a inventar estratagemas, mecanismos de fuga – Morreu? Bom....assim já não sofre mais... não sei se,  pelas leis da morte se foram libertando parafraseando Camões.

29 maio 2011

O banho




O Banho de Apolo
Naquela manhã , depois da habitual sintonia  do rádio,  rumou ao banho, abriu a água e deixou que fumegasse..
Lentamente despiu-se enquanto  olhava  no espelho,  os pensamentos balouçando para cá e para lá; já nú  entrou na banheira, pé ante pé  e deixou que a água lhe escorresse   lenta pelo corpo; ultimamente tudo  escorria corpo abaixo, as mãos caiam  num tremelicar  sem força enquanto que  os seus pensamentos adejavam mais e mais em direcção  ao big-bang.
Ensaboou-se.  Era ainda um dos prazeres que lhe restava : o sabonete da Ach. Brito, aquele que , segundo lhe tinham confidenciado , era usado na Casa Branca. Ironias do destino.
Terminado o banho e com a última chuveirada, fechou a torneira e deixou-se também ele escorrer pelo ralo da banheira. Nadaria até ao oceano, lá estava a sua origem; era aí que tudo tinha inicio. Imaginava que assim fosse..
Pelo caminho encontrou  ratazanas, outros ratos  criaturas imundas que nadavam com ele e de olhos postos no fundo do túnel , atravessou o esgoto  e renasceu.
Finalmente era livre. Algures um rádio emitia para nenhures!!

26 maio 2011

Cloreto de (s)ódio



(nú feminino- desconheço o autor) 
Acordou sonolenta, ao sentir nascer, furtiva, uma lágrima túrgida e morna que teimava em ficar no canto do olho.
Testemunha incómoda do muito que gostaria de ignorar, do que não quereria saber nunca. Era essa minúscula gota que a tinha feito sair do sono e acordar para a realidade.
Aquela divisão da casa achava-se envolta na maior penumbra, uma quase perfeita escuridão sepulcral. Estendendo as mãos para o vazio, nada mais encontrava para além dele, senão a consciência estranha de si mesma.
Por instantes teve uma antevisão daquilo que julgava ser a Morte. Rapidamente afastou tal ideia do pensamento.
Quantas vezes, durante o dia, imaginou ou, desejou mesmo morrer, mas chegado que era o véu escuro da noite dissipava-se como por encanto esse absurdo pensamento.
Agora , ali, àquela hora da noite, uma quase madrugada, sentia-se prisioneira, mas o estado de letargia era tanto que se deixou ficar quieta, parada, quase que perdida no tumultuar dos pensamentos.
A lágrima secou entretanto,  e estendendo a mão para a mesa de cabeceira, ligou  a luz do candeeiro.
O quarto ganhou nova dimensão, num abrir e fechar de olhos pensou que com o nascer do sol, novamente nasceria a esperança de um  dia  pleno de  existência.

18 maio 2011

Desencanto

Não há encanto que me encante, desencantei-me sem sentir
Que assim me desencantava.
Resta-me fugir de mim, assim como quem foge de um feitiço desencantado.
Meio século  a quebrar esteios e amarras,
a lutar contra dragões que  eram feitos de papel.
Afinal uma simples chuvada apaga as marcas na calçada
Havia ali a pegada de um dragão, ainda à pouco...
Olhei com atenção, em seu lugar  um pequeno lago,
vulgo poça de água, fazia transparecer a imagem do meu desencanto.
Assim não consigo ir mais à frente - pensei eu - quem me garante que na próxima rua
não vou encontrar uma amálgama de folhas brancas rasgadas pelo poeta que já não sente?
É que para  fazer poesia preciso  de saber que as marcas estão no caminho, e sem caminho, não há ilusão que viva, porque eu não penso e , não pensando não há memória que resista. È como a chuva na calçada - tudo apaga; hoje foi dia de chuva na minha memória, resta-me uma folha branca que eu não consigo preencher.
Ando à procura do dragão, dediquei a manhã a perscrutar o horizonte e o maldito não se digna a aparecer!
Talvez a culpa seja da chuva, sim... porque para minha tranquilidade preciso de inventar um culpado!

17 maio 2011

R.X.

 
Pintura de Francisco Metrass - Só Deus
Uma das obras primas da pintura romântica portuguesa, sobre um dos seus principais temas: a tragédia humana.
Lembro, como se fosse hoje, a primeira vez que te vi. Olhei de soslaio, não sabendo que, anos mais tarde te continuaria a olhar desse mesmo jeito.
Estou proibida de te olhar de frente, olhos nos olhos. Hoje é maior a timidez que sinto, em relação a tudo o que se passou naquele tempo. Quando te vejo existem verdadeiros tsunamis  dentro de mim, a terra saí da sua rota e tenho a impressão que até a conhecida Lei da Gravidade fica alterada, tal a tontura que sinto. 
Não sei sabes, ou se sentes, mas esquadrinho-te com o olhar demoradamente no curto espaço de  tempo em que estou contigo; nada sobra  que não passe por esta estranha máquina de RX. E depois...bem depois, quando te vais embora, fico a saborear lentamente a memória de  cada pedaço do teu corpo, gerindo esta estranha sensação até ao próximo encontro, uma vez mais feito de  um outro toque fugaz. Fica-me o teu perfume, impregnado nas minhas mãos. E esta sofreguidão de ti não vai acabar nunca. Estrangula-me este desejo do abraço e do beijo que não dou; quando te vejo partir finjo que tudo está bem, sorrio para, no instante seguinte,  abrir as portas do meu céu e deixar que as nuvens descarreguem gotas de água salgada sobre a  pele ressequida.

16 maio 2011

Deserto

 

A minha alma é um braseiro a consumir a soma dos meus dias.
Estéril, morre  perto da sombra do  oásis chamado sonho.
Há um negro poço onde à noite me debruço e vejo as estrelas a cintilarem.
Escolho entre o brilho das estrelas e o calor do sol.
Falta-me a escada para descer ou talvez abra os braços e voe nas ondas quentes  do horizonte.
Abro os olhos e vejo-te em forma de pássaro suspenso no manto diáfano do dia.
Deixa que se extinga o último sopro da brisa e faz de mim fénix.
Mais tarde gritarás no branco silêncio o que nunca eu ousei dizer-te.
Nesse instante as palmeiras darão frutos e o doce das tâmaras saciará o meu desejo de ti.




13 maio 2011

A Volta do Duche


Há uma roupagem diáfana cor de primavera
A brincar na copa das árvores
Agora as madrugadas são coloridas
Em tons de mel e pêssego
As noites tem o brilho azul
Da chama enluarada
Pela janela aberta dançam pedaços
De voile encantado
Asas de fadas brincam às escondidas.
Ao fundo da minha escada florescem as hortenses
A fazerem lembrar Sintra e a “Volta do Duche”
Um dia vou voltar a ser a menina das tranças negras
Vou-me passear contigo por aí,
E de mão dada vamos à fonte da Sabuga.
Mãe, vais voltar para me dar a mão?
Tenho sede do teu olhar .

12 maio 2011

A Fonte da Sabuga


Há uma roupagem diáfana cor de primavera
A brincar na copa das árvores
Agora as madrugadas são coloridas
Em tons de mel e pêssego
As noites tem o brilho azul
Da chama enluarada
Pela janela aberta dançam pedaços
De voile encantado
Asas de fadas brincando às escondidas.
Ao fundo da minha escada florescem as hortenses
Tanto que me lembram Sintra e a “Volta ao Duche”
Um dia vou voltar a ser a menina das tranças negras
E de mão dada vamos à fonte da Sabuga.
Mãe vais voltar para me dar a mão?
Tenho sede do teu olhar .

09 maio 2011

Inferno

Vénus ao espelho - 

Adolphe-William 

Bouguereau 1879

Dentro do meu peito há um inferno
Labaredas de cor rubra em fúria
Revolvendo-se em espasmos de luxuria
Um inferno a arder abrasador
É sina minha sensualizar a Dor.
Tudo o que mais anseio de mim foge
E tanto que quero eu partir agora
Dai-me asas Senhor, dai-me asas
Deixai-me voar pelo céu fora!
Lá bem no alto, junto às estrelas
No meio da escuridão
Eu queria ser estrela cadente
E cair no teu coração.
Tem momentos que olho no espelho
E espreito a estranha que há em mim
Não sei quem é, não me conheço
E esta interrogação não tem fim.
Dentro do meu peito há um inferno
Labaredas de cor rubra em fúria
E o meu corpo frio a lembrar marfim.

05 maio 2011

Apelo


Há qualquer coisa no rio e no mar
Uma estranha voz, um apelo constante
Que me está sempre a chamar.
Tantas vezes que me calo
E nada mais sei dizer
Quando os oiço em silêncio
Quando me sinto a morrer.
E esta tristeza sentida
Só o rio e mar sabem dela
Tanto que a quero esconder.
Deixai-me ver se é certo
Andar aos poucos a enlouquecer
Fingindo o que não sou
E nunca virei a ser!

Há qualquer coisa no rio e no mar
Uma estranha voz, um apelo constante
Que me está sempre a chamar.
Um dia parto sem rancor
Já cumpri da Vida  a má sorte
  falta cumprir a Morte.
Por incumprimento do Amor.



02 maio 2011


Há sempre uma árvore entre nós
Porta, janela, caixão
Transformado em mesa, cama, chão
Não sei se o fim será aquele ramo de rosas
Que  murchas acabarão ao sol
Ou  mais um pedaço de madeira
a matar a  solidão

01 maio 2011

Mãe :


Em cima da minha mesa
Da minha mesa de estudo
Mesa da minha tristeza -
Em que de noite e de dia
Rasgo as folhas, leio tudo
Destes livros em que estudo,
E me estudo
(Eu já me estudo...)
E me estudo
A mim
Também
Em cima da minha mesa,
Tenho o teu retrato, Mãe!À cabeceira do leito,
Dentro de um caixilho,
Tenho uma Nossa Senhora
Que venero a toda a hora...
Ai minha Nossa Senhora,
Que se parece contigo,
E que tem ao peito,
Um filho
(O que ainda é mais estranho)
Que se parece comigo,
Num retratinho,
Que Tenho,
De menino pequenino!...
No fundo da minha mala,

Mesmo lá no fundo a um canto,
Não lhes vá tocar alguém,
(Quem as lesse, o que entendia?
Só riria
Do que nos comove a nós...)
Já tenho três maços, Mãe,
Das cartas que tu me escreves
Desde que saí de casa...
Três maços - e nada leves! -
Atados com um retrós...

Se não fora eu ter-te assim,
A toda a hora,
Sempre à beirinha de mim,
(sei agora
Que isto de a gente ser grande
Não é como se nos pinta...)
Mãe!, já teria morrido,
Ou já teria fugido,
Ou já teria bebido
Algum tinteiro de tinta.

Poema de José Régio